Cinema molotov

Brasil Observer - out 10 2016
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Elenco do filme “Aquarius” se manifesta em Cannes

(Read in English)

 

Estaríamos à espreita do nascimento de um novo cinema marginal?

 

Por Tiago Di Mauro

Diante de tudo que tem ocorrido na política brasileira, é impossível não notar o ativismo participativo de todos os setores artísticos do país. Durante o período da ditadura civil-militar, de 1964 a 1985, a resistência artística que fez mais barulho foi certamente a de músicos e cantores, o que culminou, por exemplo, na prisão e posterior exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil em Londres. Entretanto, neste momento de golpe parlamentar consumado no Brasil, é importante frisar as ações de profissionais ativistas do cinema nacional.

O clímax se deu no momento em que o elenco do filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, selecionado a concorrer a Palma de Ouro no Festival de Cannes 2016, protestou com cartazes no tapete vermelho da exibição do filme na França, com dizeres como “O Brasil está experimentando um golpe de estado”. Com Sônia Braga à frente, retomando seu posto de musa do cinema nacional, o diretor e seu elenco protagonizaram um momento emblemático na história das artes no Brasil. As razões são sabidas, mas quais são suas possíveis consequências? E por que a maioria dos diretores e produtores de cinema do Brasil apoiou o manifesto?

Quando o golpe civil-militar de 1964 aconteceu, o Brasil vivia um momento de extrema efervescência no cinema. O Cinema Novo, com sua estética inovadora e provocativa, projetava o cinema nacional a níveis jamais alcançados, participando de festivais de todas as partes do mundo e alcançando um prestígio que persiste até hoje. Logo adiante, na década de 1970, o cinema brasileiro vivenciou um paradoxo, pois era financiado pelo mesmo governo que o censurava, através da recém-inaugurada Embrafilmes, empresa estatal criada para produzir e distribuir cinema.

Com isso, o cinema nacional perdeu força como meio de profusão de ideias revolucionárias e de reflexão social, dando espaço para as famosas Pornochanchadas, filmes de cunho cômico erótico e superficiais em suas narrativas. Ficou a cargo do Cinema Marginal, com filmes de baixíssimos orçamentos, confrontar o regime e, por meio de suas alegorias narrativas, denunciar os disparates e injustiças da ditadura, mas sem muito alcance de público. A força crítica do cinema nacional se enfraqueceu. Só com a abertura política da década de 1980 que resurgiram as temáticas que ilustravam o regime civil-militar e as mazelas sociais brasileiras.

O Ministério da Cultura foi criado apenas em 1985, pelo então presidente José Sarney. Antes, as atribuições dessa pasta eram de autoridade do Ministério da Educação, que de 1953 a 1985 era conhecido por Ministério da Educação e Cultura. Em 1990, porém, sob o governo de Fernando Collor, a cultura e o cinema sofrem uma nova baixa com extinção da Embrafilmes e com a transformação do jovem Ministério da Cultura em Secretária da Cultura. O ministério foi restituído em 1992, pelo presidente Itamar Franco, inaugurando uma fase conhecida como Cinema da Retomada (1992-2003). Mais adiante, no final do governo Fernando Henrique Cardoso, em setembro de 2001, cria-se a Ancine, agência estatal com autonomia administrativa e financeira cujo objetivo é fomentar, regular e fiscalizar o cinema do Brasil. Em 2003, durante o governo Lula, a Ancine passa a ser vinculada ao Ministério da Cultura, que deixa de atender a demandas específicas de fomento e passa a pensar em políticas culturais, tendo como ministros durante esse período Gilberto Gil e Juca Ferreira.

Desde 1992, ano que teve apenas um filme brasileiro produzido, o cinema nacional apoiado pelo Ministério da Cultura vem crescendo ininterruptamente com enorme liberdade temática. Em 2015, de acordo com o informe anual publicado pela Ancine, o país alcançou o patamar de 172,9 milhões de espectadores nas salas de cinema, um aumento de 11,1% em relação a 2014. Os dados mostraram ainda que o público de filmes brasileiros, em relação ao total de espectadores, passou de 12,2% em 2014 para 13% em 2015, além de uma produção de 128 longas nacionais no ano passado.

O Brasil tem alcançado uma marca inédita de consumo de sua própria cultura. Um mercado pulsante, ativo, bilionário e que, de repente, durante a gestão interina do presidente Michel Temer, viu a extinção, no dia 12 de maio de 2016, do Ministério da Cultura. Uma ação que gerou reação instantânea: a ocupação das sedes do Ministério da Cultura em capitais do Brasil por músicos, bandas, cantores, atores, atrizes e poetas, além do manifesto em Cannes.

Desde então toda e qualquer oportunidade de se contrapor ao governo Temer se fez necessária, a ponto de o Ministério da Cultura ser reinstaurado. Infelizmente, tarde demais para conter a revolta de uma preocupação que vai além da extinção da pasta. Qual será a gestão que a pasta vai receber? Seria essa reintrodução uma estratégia para manter aparências enquanto se desmantela o ministério?

O atual Ministro da Cultura, Marcelo Calero, não tem encontrado paz. Confrontou a audiência e abandou o Festival de Cinema de Petrópolis quando foi chamado de golpista. São guerrilheiros de frente, além de Kleber Mendonça Filho, cineastas como Jorge Furtado, Henrique Dantas e Claudio Assis. E chama atenção a atuação de três mulheres com três filmes-projetos que retratarão o processo do impeachment e golpe sofrido pela ex-presidenta Dilma Russeff: Maria Augusta Ramos, Petra Costa e Anna Muylaert.

O confronto entre o Ministério da Cultura e Kleber Mendonça Filho se fez ainda mais agressivo quando da seleção do filme brasileiro que representaria o país numa vaga para concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017. Anna Muylaerte e Gabriel Mascaro retiraram a candidatura de seus respectivos filmes, “Mãe Só Há Uma” e “Boi Neon”, para privilegiar a escolha de “Aquarius”. Mas, no final, o selecionado foi “Pequeno Segredo”, de David Schurmann, o que acarretou denúncias de Kleber Mendonça Filho sofrer perseguição política.

Com um cenário de cineastas engajados contra o novo governo; um contingenciamento de verbas investidas em cinema – 2,4 bilhões de reais em 2016 contra 3,3 bilhões de reais em 2015; e a extinção e a reinstauração do Ministério da Cultura com um ministro que não exerce simpatia para com a maioria da classe artística, é inevitável não haver preocupação com o gerenciamento do futuro do cinema brasileiro. Já existem especulações sobre a possível volta de uma censura a projetos que venham a tratar do impeachment como golpe, ou lidar com quaisquer outros assuntos que não estejam alinhados aos interesses do novo governo.

De qualquer maneira, com a expansão dos meios de distribuição de produtos audiovisuais e o barateamento de câmeras de filmagem e equipamentos de produção, mesmo diante de uma censura temática, o cinema brasileiro se fortaleceu suficientemente para gerar independentemente seus próprios produtos. Estaríamos à espreita do nascimento de um novo cinema marginal? Naturalmente será uma pena caso o processo de expansão seja estagnado, em duas décadas poderíamos estar concorrendo em níveis de distribuição com outros mercados, como o do cinema Alemão, Mexicano, Russo ou da Coreia do Sul. Quem viver verá.

 

CINEMA BRASILEIRO NO LONDON FILM FESTIVAL

A edição deste ano do London Film Festival, de 5 a 16 de outubro, traz quatro longas-metragens e dois curtas brasileiros em sua programação:

Aquarius, de Kleber Mendonça Filho (14 e 16 de outubro)

Don’t Call Me Son, de Anna Muylaert (12 e 13 de outubro)

The Ornithologist, de João Pedro Rodrigues (10, 11 e 12 de outubro)

The Space in Between – Marina Abramović and Brazil, de Marco Del Fiol (14 e 16 de outubro)

The Girl Who Danced With the Devil, de João Paulo Miranda Maria (12 de outubro)

There is land!, de Ana Vaz (9 de outubro)

* Para mais informações acesse www.bfi.org.uk/lff