Polarização e protesto

Brasil Observer - mar 10 2016
13/12/2015- São Paulo- SP, Brasil- Manisfestantes reúnem-se na avenida Paulista, em ato contra o governo Dilma Rousseff. Foto: André Tambucci/ Fotos Públicas
Manifestações a favor e contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff devem se repetir neste mês de março

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É crucial entender junho de 2013 como um momento de abertura societária no país, pois as mobilizações continuam

 

Por Breno Bringel, no Open Democracy | www.opendemocracy.net

O ano de 2016 começou no Brasil com novos protestos. Os motivos são diversos, mas continuam primando reivindicações relacionadas ao aumento das tarifas do transporte público, ao encarecimento do custo de vida e ao direito à cidade, de forma geral. Estas lutas auguram que as mobilizações iniciadas em junho de 2013 não se esgotaram. Ao contrário, inauguraram um novo ciclo político no país, produzindo uma abertura societária cujas consequências são visíveis hoje em várias esferas e não somente nas ruas. Desde então, emergiram novos espaços e atores que levaram a um aumento da conflitualidade no espaço público e a um questionamento dos códigos, atores e ações tradicionais que predominam no país desde a redemocratização política.

Embora com visões e projetos distintos (e, em geral, opostos) da sociedade brasileira, os indivíduos e coletividades à esquerda e à direita do governo mobilizados desde 2013 até hoje são fruto desta mesma abertura sociopolítica. As formas de ação e de organização por eles adotadas – próprias de uma transformação das formas de ativismo e de engajamento militante no país e no mundo hoje – favoreceram um surgimento rápido, a midiatização e a capacidade de interpelação e expressividade, mas também provocaram várias tensões e ambivalências em sua própria constituição e nos resultados gerados.

Entre junho de 2013 e o início deste ano o país transitou por cenários diversos, marcados por uma maior radicalização e polarização política. O desenlace ainda é incerto, mas vivemos um cenário de transição onde o “velho” não terminou de morrer e o “novo” ainda não floresceu totalmente. Neste processo de sedimentação, é fundamental entender os novos atores emergentes, os impactos imediatos dos protestos, os realinhamentos dos grupos políticos e suas construções políticas e discursivas.

 

ABERTURA SOCIETÁRIA

Participaram das mobilizações de 2013 indivíduos e grupos sociais diversos e com um amplo espectro ideológico. Ficou patente a indignação difusa, a ambivalência dos discursos, a heterogeneidade das demandas e a ausência de mediação de terceiros e de atores tradicionais, algo também notório em várias mobilizações contemporâneas, a exemplo das ocorridas em países como a Espanha e os Estados Unidos. A diferenciação dos ritmos, composições e olhares dos protestos nos vários lugares onde ocorreram leva-nos à importância de situar as mobilizações em diferentes coordenadas espaço-temporais. Embora o lócus de ação das manifestações fossem os territórios e espaços públicos (através da ocupação massiva de praças e ruas), havia uma conexão prática e simbólica com outras escalas de ação e significação, sejam elas nacionais ou globais, marcando uma ressonância de movimentos e de subjetividades, bem como dinâmicas de difusão e de retroalimentação.

É crucial entender junho de 2013 como um momento de abertura societária no país. Uma vez aberto o espaço de protesto pelas mobilizações iniciais e pelos movimentos iniciadores (tais como o Movimento Passe Livre, em São Paulo), outros atores se uniram para fazer suas próprias reivindicações, sem necessariamente manter os laços com os atores que as desencadearam e/ou repetir formas, cultura organizacional, referências ideológicas e repertórios de ação dos iniciadores essas mobilizações. Alonso e Mische captaram com bastante precisão a ambivalência dos repertórios presentes em junho dentro do que elas definiram como repertórios “socialista” (familiar na esquerda brasileira das últimas décadas), “autonomista” (afim a vários grupos libertários e a propostas críticas do poder e do Estado) e “patriótico” (que usa um discurso nacionalista e as cores verde e amarela com um significado histórico e situacional bastante particular).

Ao emergir um novo ciclo de protestos, presenciou-se o que tenho definido como transbordamento societário, isto é, um momento em que o protesto se difunde dos setores mais mobilizados para outras partes da sociedade, transbordando os movimentos sociais que o iniciaram. No clímax desse processo, um amplo espectro da sociedade está mobilizado em torno de uma indignação difusa, portando diferentes perspectivas e reivindicações, que coexistiram no mesmo espaço físico e às vezes com um mesmo lema (contra a corrupção ou contra o governo), embora com construções e horizontes muito distanciados e em disputa.

Nesta fase catártica, que começou em junho de 2013 e durou alguns meses, a polarização ideológica já existia (levando, por exemplo, a agressões a manifestantes que portavam bandeiras, camisetas e outros símbolos vinculados à esquerda), mas estava mais diluída na indignação em massa e na experimentação das ruas.

 

CENÁRIO PÓS-JUNHO

Após a heterogeneidade inicial, começa em 2014 uma fase de decantação, com algumas reivindicações principais dos indivíduos e grupos já diferenciadas no espaço e alinhadas mais claramente à esquerda e à direita. Neste momento, já não há manifestações massivas nas ruas e nas praças, mas seguem ocorrendo várias mobilizações mais pontuais, bem como uma reorganização mais invisível dos indivíduos, das redes e dos coletivos. A confluência no mesmo espaço público é paulatinamente deslocada por convocatórias com objetivos e recortes mais definidos.

Embora boa parte destas ações não se dirigissem ao campo político-institucional e político-eleitoral, que possui lógicas e temporalidades diferentes do campo da mobilização social, o cenário pré-eleitoral de meados de 2014 rumo à contenda presidencial acabou abrindo um novo momento de acirramento das polarizações que absorveu boa parte dos atores sociais e políticos ao longo de 2015.

A pesar das críticas formuladas ao Partido dos Trabalhadores (PT) em particular e aos partidos políticos em geral, as eleições presidenciais de 2014 mobilizaram massivamente os brasileiros, inclusive para defender, em alguns casos, o partido no governo como “mal menor”. A vitória apertada de Dilma Rousseff gerou um clima de instabilidade que foi alimentado constantemente por setores da oposição, buscando forjar o impeachment da presidenta.

No calor da disputa presidencial, muitos analistas associaram a perda de votos do PT com as manifestações de 2013. Embora possam haver, de fato, algumas relações entre protesto e voto, não se pode estabelecer uma ilação e uma causalidade direta. Além disso, o maior problema é que as leituras hegemônicas sobre os impactos das manifestações de 2013 continuam restringindo os efeitos ao campo político-eleitoral e político-institucional.

Torna-se importante diferenciar as tentativas de apropriação de algumas das pautas das manifestações por certos candidatos (caso de Marina da Silva e seu discurso de uma nova política recheada de velhas práticas) e partidos políticos descolados dos setores mobilizados daqueles processos nos quais há, de fato, uma relação histórica ou alianças táticas e estratégicas entre grupos sociais e políticos (caso do PT como partido e não como governo e de outros menores à esquerda).

 

IMPACTO DOS PROTESTOS

Estas perspectivas político-institucionais e político-eleitorais restringem a visão da política e do político e ignoram outro tipo de resultados, impactos e cenários possíveis. Argumentamos, de maneira inversa, que um olhar ampliado e multidimensional para os impactos é fundamental, pois nem todos os desdobramentos das mobilizações de junho de 2013 são facilmente mensuráveis nestes termos. Ao menos outros dois tipos de impactos (os sociais e os culturais) devem ser considerados.

De entre os impactos sociais, podem-se destacar dois principais: a reconfiguração dos grupos sociais e a geração de novos enquadramentos sociopolíticos. No primeiro caso, as mobilizações recentes serviram para chacoalhar as posições, visões e correlações de forças entre partidos, sindicatos, movimentos sociais, ONGs e outras coletividades.

No segundo caso, incluem-se novos enquadramentos individuais e coletivos, relacionados hoje principalmente à qualidade de vida nas grandes cidades brasileiras, ao bloqueio midiático, à violência (inclusive a estatal, que afeta de forma particular as mulheres e os jovens negros pobres que vivem nas periferias urbanas) e ao machismo.

No âmbito cultural observam-se inovações nas lógicas de mobilização e nos mecanismos relacionais e interativos do ativismo. Marcada pela conflitualidade, pela difusão viral, por identidades referenciais diversas e por uma expressividade do político mediada pela cultura, tanto militantes de primeira viagem como movimentos mais consolidados colocam em xeque a cultura política da apatia. Embora em alguns casos haja um distanciamento entre uma nova geração de ativistas e a militância mais experimentada, em outros aparecem confluências criativas, como é o caso de algumas sinergias entre redes submersas e iniciativas artístico-culturais no engajamento político (algo marcante em cidades como Belo Horizonte).

 

MOVIMENTOS E POLARIZAÇÃO

Torna-se importante compreender junho de 2013 não como um “evento” isolado, mas como um processo. Para isso, é fundamental associar sempre os movimentos sociais a movimentos societários mais abrangentes. Isso é central no atual momento de crise no Brasil, onde parece haver uma reconfiguração das formas de ativismo e dos sujeitos políticos. Nesse sentido, assim como se relacionou as mobilizações de massa dos anos 1970 e 1980 com um movimento societário de redefinição da democracia e dos direitos, as mobilizações recentes estão associadas a desenvolvimentos estruturais do país, que foram particularmente velozes na última década.

Numa sociedade tão desigual como a brasileira, estas mudanças afetaram de diferentes maneiras as classes sociais, levando a frustrações que embora, em alguns casos, convergissem, eram opostas ideologicamente. Os ricos ficaram mais ricos, enquanto uma parcela da população saiu da pobreza e passou a ter acesso a certos serviços, espaços e direitos que antes somente eram exercidos por uma classe media alta que viu seus “privilégios” e seu estilo de vida ameaçados.

Na atual situação de polarização, é possível identificar claramente no Brasil dois polos radicalmente antagônicos, com uma diversidade de situações intermediárias possíveis. Por um lado, um campo progressista e de radicalização da democracia que age orientado por valores como a igualdade, a justiça, a pluralidade, a diferença e o bem viver. Por outro lado, um campo reacionário, marcado pelo autoritarismo, certos traços fascistas e antidemocráticos e pela defesa dos privilégios de classe, da propriedade privada e de uma visão sempre evasiva da liberdade.

No primeiro caso, trata-se de uma camada diversa de jovens, coletividades, plataformas e movimentos que tem militado na denúncia (e na tentativa de eliminação) das hierarquias, da opressão e dos abusos do Estado e em reivindicação variadas, como a qualidade dos serviços públicos e por uma vida mais humana nas cidades. Entendem a democracia em um sentido ampliado, não como sinônimo de instituições, representação ou eleições, mas como uma criação sociopolítica e uma experiência subjetiva.

Já o segundo polo perpetua, nos seus discursos e na prática cotidiana, as estruturas de dominação e as formas de opressão. Aceita a alta desigualdade social existente no país baseado no discurso da inevitabilidade e/ou da meritocracia. Prega, em alguns casos, pelo retorno de um passado melhor (a ditadura), para o qual não temem pedir a intervenção militar. Contam, em geral, com apoio e atuam em colusão com as elites econômicas e midiáticas. Costumam atuar nos bastidores da política, embora combinem agora estas estratégias com uma novidade: o recurso à mobilização nas ruas e à ação direta.

O leque de posturas que transcendem estas posições é amplo, mas a polarização existente na sociedade brasileira hoje acaba levando a que a maioria das interpretações reduzam o conflito realmente existente a estes campos, nublando o potencial das vozes mais transformadoras de junho de 2013. Nestes ensaios insurgentes e na rearticulação do campo popular concentram-se as esperanças de geração de alternativas ao atual cenário.

Breno Bingel é professor de sociologia do IESP-UERJ no Rio de Janeiro. O artigo foi editado pelo Brasil Observer.