‘Quando você coloca a lente do feminismo, não consegue não se incomodar com certas coisas’

brasilobserver - mar 08 2016
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Nana Lima (Foto: Arquivo pessoal)

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Brasil Observer entrevista a publicitária Nana Lima, uma das fundadoras da Think Eva e diretora de projetos da Think Olga

 

Por Ana Toledo

Os brasileiros têm um alto índice de engajamento nas redes sociais. Diversos assuntos são levantados o tempo todo e, entre eles, está o feminismo. Comentar sobre o tema deixou de ser novidade, o que por si só já pode ser considerado um avanço, pois a questão é tradicionalmente tratada como tabu no Brasil.

A mais recente “polêmica” feminista rendeu até tréplica. O debate começou a partir de um blog hospedado no site do jornal Folha de S. Paulo, onde foi publicado um artigo assinado pela atriz Fernanda Torres que em pouco tempo gerou grande repercussão na internet. Mulheres do país inteiro não pouparam caracteres para questionar alguns conceitos expostos pela atriz. O mesmo blog publicou em seguida uma resposta de Fernanda Torres, que pediu desculpas após reavaliar suas opiniões. A tréplica aconteceu mesmo assim. Alguns aceitaram o mea culpa, enaltecendo a importância do diálogo e a capacidade da atriz em rever seus conceitos. Outros, porém, não aceitaram. De uma forma ou de outra, trata-se de uma mostra de como o movimento feminista no Brasil tem evoluído nos últimos anos e, obviamente, da importância da internet nesse processo.

Independente da opinião sobre o caso citado, é fato que desde 2013 diversas iniciativas foram criadas e outras, que já existiam há mais tempo, tiveram divulgação ampliada a partir dos desdobramentos desses debates. É o caso da Think Olga, ONG responsável pela campanha Chega de Fiu-Fiu e também pela centralização dos depoimentos da iniciativa #meuprimeiroassedio, que ganhou visibilidade internacional. Como consequência da Olga, nasceu a Think Eva, empresa de consultoria criada para marcas, agências, instituições, ONGs e órgãos públicos que queiram criar um diálogo saudável com as mulheres.

Para falar sobre a experiência desses projetos, numa conjuntura na qual o tema tem ganhado repercussão voluntária na internet através de diversas frentes, o Brasil Observer entrevistou a publicitária Nana Lima, uma das fundadoras da Think Eva e diretora de projetos da Think Olga. Em um papo descontraído, Nana mostrou sua sensibilidade pessoal em relação ao tema e como isso é um fator fundamental na escolha da linguagem que utilizam para fazer a mensagem ser efetiva através de mudanças práticas. Afinal, nem com a Eva, nem com a Olga, elas “pregam para convertidos”.

 

No dia das mulheres, rosa, só se for a Luxemburgo? Ainda temos um dia para ser comemorado?

O porquê desse dia é uma história muito triste e é horrível pensar que de lá pra cá muitas coisas não mudaram. As demandas são praticamente as mesmas: salários iguais, um mercado de trabalho que olhe para a mulher como ser humano, o entendimento de que temos necessidades diferentes dos homens. O porquê disso não é algo para ser celebrado, pois estamos andando em passinhos de formigas e muitas vezes voltamos para trás. Mas eu acho que é interessante ter um mês, gerar debate. Tanto com a Eva quanto com a Olga recebemos muitos convites de empresas, escolas e universidades para palestras. E o que tentamos fazer é dar continuidade ao trabalho para além do mês de março. Eu tenho um mixed feeling com isso. Por um lado é muito interessante, mas por outro a data não pode ser banalizada. É um dia para a gente pensar que não mudou tanto quanto falam que mudou.

 

Entender o feminismo é como escolher entre a pílula azul ou vermelha do Matrix, você nunca poderá voltar atrás?

Acho que sim (risos). A gente até brinca que, quando você coloca a lente do feminismo, não consegue mais não se incomodar com certas coisas, nem assistir TV do mesmo jeito, até as conversas mudam. Você entende que são comportamentos. Inclusive o fato de que, se você não falar nada, você está perpetuando o comportamento e isso volta três vezes pior para você. É isso que está acontecendo com essa geração. Não entra na cabeça das meninas mais novas que elas não têm os mesmos direitos que um menino, por exemplo; que talvez ela tivesse que não ir para a faculdade para ficar cuidando dos filhos; que ela vai ganhar menos que um menino que entrou na faculdade com ela; que mesmo sendo tão capaz quanto, terá salário diferente.

 

O movimento feminista no Brasil tem ocupado um espaço importante de debate, nas redes e nas ruas. Em longo prazo, como você enxerga o reflexo disso na sociedade?

Enquanto não acontecer mudanças estruturais – nas leis, nas empresas, na comunicação e no marketing – essa onda, essa “modinha”, não vai passar. As mulheres estão se conscientizando muito mais do papel delas, do direito delas, e estão se organizando muito mais para lutar por isso. Alguns jornais perguntam sobre esse “novo feminismo”, mas não é novo, é a mesma demanda das décadas de 1960 e 1970, mesma coisa que reivindicávamos nas décadas de 1920 e 1930. Agora com a internet temos o poder de organização, de reclamação, de mostrar a nossa insatisfação. Às vezes você acha que está sozinha, que só você pensa uma coisa, então você posta na internet e percebe uma enxurrada de apoios. Enquanto essas mudanças não ocorrerem, como a descriminalização do aborto, a equidade de salários, a licença paternidade – para que as mulheres não sejam colocadas na geladeira antes ou depois da maternidade –, nada vai mudar.

Do ponto de vista do marketing, acho que essa comunicação “empoderadora” vai virar regra. Ainda estamos no início, mas acredito que isso será quase o modus operandi das marcas. Estou sendo bastante otimista, mas eu acho que é isso que vai acontecer.

 

A maioria dos eleitores no Brasil é mulher, mas a representatividade feminina no Congresso ainda está bem baixa. Como você analisa esta conjuntura?

Ter mulheres no Congresso não significa que tudo vai melhorar, ou que as pautas do movimento vão estar melhores. É preciso saber que tipo de mulher nós estamos colocando lá. Estamos colocando diversidade? Você pode ter uma mulher, por exemplo, que só esteja interessada na pauta da agricultura. Uma pessoa que não está pelas demandas do movimento. Temos que ter mais diversidade de mulheres, de olhares, para que isso seja transformado em diversidade de políticas públicas. Agora me parece que temos umas visões muito homogêneas de tudo. Um exemplo é a Dilma Rousseff, uma presidenta mulher que nos deu cortes nas políticas públicas para mulheres. Isso é um desafio do Brasil no sentido de como fazer a política ser algo sexy para jovens que queriam se aplicar à política. Esses dias eu estava numa reunião e nos questionamos por que nós mesmos não pensamos em nos candidatar? Nós temos um exemplo de como mulheres que ocupam cargos de poder são massacradas por serem mulheres. Elas sofrem tanto machismo que você de fora já diz que jamais ocuparia um cargo como aquele. Se tivermos mais mulheres lá, o machismo não vai ser tão declarado e aceito. E, talvez, desta forma, isso fique mais sexy para jovens se candidatarem.

 

O feminismo passa basicamente por duas questões: direitos no mercado de trabalho (luta ligada às reivindicações nas fábricas da Inglaterra vitoriana) e a sexualidade (a partir dos movimentos de 1968 na França). Como você entende essas duas frentes?

Agora a luta está muito mais interseccional. As mulheres estão entendendo que, por exemplo, eu, mulher branca, de classe média alta, altamente escolarizada, tenho uma luta. E não adianta eu chegar sozinha lá, pois tem mais um monte de mulheres, de diferentes experiências de vida, desde classe social, etnias, que sofrem outras formas de violência. Acho que isso é uma das coisas que faz o movimento ser mais coerente. A gente consegue avançar, mas ao mesmo tempo olha para o lado e vê que outras não conseguiram. E a internet colabora, pois conseguimos compartilhar mais experiências. Hoje eu consigo criar uma empatia com o que uma mulher negra sofre na periferia. E isso faz o movimento ser muito mais coerente e muito mais interessante. É mais desafiador, pois é mais fácil pisar na bola em algumas visões. Mas, por outro lado, torna a coisa mais legal de trabalhar, atingindo não apenas um grupo específico de mulheres.

 

A Think Eva tem outro papel nesse movimento, o de trazer a discussão de fora para dentro das empresas. Como é desenvolver esse trabalho?

Trabalhamos em três frentes com as empresas. Uma é a estratégia, que é trabalhar dentro da comunicação da empresa, entrar no branding e também analisar a coerência da empresa da porta para dentro. Você não pode falar que empodera mulheres e suas funcionárias ganharem menos. Outra parte é o conteúdo, tanto de comunicação interna quanto materiais externos, campanhas conjuntas. E a terceira é a educação, com ações de formação, workshops. Pode acontecer de uma empresa não estar no ponto de mudar ou começar a falar disso, mas querer começar esse debate lá dentro. E as três frentes, normalmente, se misturam. Com o tempo, o fato de uma empresa não ter uma política interna para mulheres será uma surpresa.

 

A nova geração tem surpreendido em diversas formas de movimento, como as ocupações das escolas em São Paulo no final do ano passado. Como você vê o feminismo vem sendo debatido entre as mais jovens?

As meninas estão dando um baile na nossa geração. Já tivemos a experiência de dar palestras para meninas entre 12 e 16 anos e é incrível a consciência que elas têm. A clareza de que precisam lutar para ter os mesmos direitos que os meninos já tem, dentro e fora da escola. Por elas terem acesso à internet, muito mais do que a gente teve, elas estão conseguindo se organizar e se informar muito mais. As ocupações das escolas em São Paulo, o movimento foi praticamente liderado pelas meninas. Acho que essa geração não vai dar passos, mas saltos.

Publicado originalmente na edição 36 do Brasil Observer