Lava Jato: quando 283 anos viram 7

brasilobserver - mar 07 2016
São Paulo - Polícia Federal chega a construtora Odebrecht na 23ª fase da Operação Lava Jato( Rovena Rosa/Agência Brasil)
Em São Paulo, Polícia Federal chega a construtora Odebrecht na 23ª fase da Operação Lava Jato (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

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Entre discursos e abusos, operação da PF é um verdadeiro paradoxo, argumenta Lenio Luiz Streck

 

A Operação Lava Jato, a investigar esquema de corrupção na Petrobrás, é um verdadeiro paradoxo. É sua própria contradição. De um lado, na teoria, o simpático discurso do combate à corrupção e do fim da impunidade. De outro, na prática, os reiterados abusos no emprego da colaboração premiada (no jargão popular, “delação premiada”) e o constante abandono das garantias constitucionais.

Ora, como é possível que, em um passe de mágica, um total de 283 anos de penas aplicadas a 13 delatores se transformem em sete anos? O problema: não há fiscalização. Por exemplo, como é possível que uma pena de 13 anos se transforme em um ano? A resposta é muito simples. Como não existe a figura do ombudsman no Brasil, quem vai dizer que um acordo de delação é regular ou irregular? O delator delata o que quer. E como quer. O Ministério Público agradece. E o juiz homologa.

Muitas pessoas não entendem o que há de errado no modo como se fazem os acordos de delação. Veja-se: ninguém é a favor da corrupção (a não ser o corrupto, é claro). Mas a questão é: podemos combater a impunidade pagando qualquer preço? Os que hoje torcem pela diminuição de garantias – sim, é possível ver importantes formadores de opinião dizendo coisas como “há que se enfrentar a corrupção com mecanismos de exceção” – são e serão os primeiros a reclamar na hora em que as garantias lhes faltarem. Quanto queremos pagar no mercado da democracia? Estamos dispostos a “vender” a Constituição? “Ah, a Constituição é ruim nesse ponto”. Pois é. Mas em outros é boa, não?

Sei que é antipático dizer isso, mas vivemos em tempos utilitaristas. Por isso queremos “vender” as garantias. E poderemos chegar a um paradoxo: se todos os réus delatarem, o que restará? E como resolveremos as delações contraditórias?

Por mais que tenhamos violência ou corrupção no Brasil, nada disso quer dizer ou significar que podemos agir de uma forma consequencialista. Isto é, para combater a corrupção – que é endêmica no Brasil –, não podemos, obviamente, atropelar direitos. A justiça não pode ser utilitarista. Os fins não justificam os meios.

Vamos dar um caso: decisão do Tribunal Regional Federal (TRF-4) de 30 de julho de 2015 negou Habeas Corpus para um acusado da Operação Lava Jato que estava, já naquele momento (continua até hoje, mais de seis meses depois), preso há mais de 500 dias. O caso obviamente já extrapolou o prazo razoável que a jurisprudência vem fixando, de cerca de 170 dias.

O TRF entendeu que o excesso do prazo estava justificado porque o Superior Tribunal de Justiça autorizava a continuidade da prisão preventiva nas hipóteses da ocorrência de “pequeno atraso na instrução do processo”. Observemos até que ponto chega o consequencialismo/utilitarismo do Tribunal: mais de 500 dias são entendidos como um “pequeno atraso”. Será que, para combater a corrupção, podemos trocar o sentido das palavras? O que impressiona é a quase ausência de protestos na comunidade jurídica. O que muito se vê é o aplauso da mídia.

Alguns juristas – e cito o professor Joaquim Falcão, da Fundação Getúlio Vargas – dizem que há um novo direito no Brasil. Falcão diz que se trata de uma mudança geracional na magistratura, no Ministério Público, na Polícia Federal: “Juízes, procuradores, delegados são mais jovens. Fizeram concurso mais cedo. Vivem na liberdade de imprensa, na decadência dos partidos e na indignante apropriação privada dos bens públicos. E não têm passado a proteger ou a temer. Dão mais prioridade aos fatos que às doutrinas. Mais pragmatismo e menos bacharelismo. Mais a evidência dos autos – documentos, e-mails, planilhas, testemunhos, registros – do que a lições de manuais estrangeiros ou relacionamento de advogados com tribunais”.

Quero acrescentar algo ao que disse Falcão. O problema, para mim, é cultural. Ocorre que essa nova geração faz a mesma coisa que a “geração anterior” já fazia. Eles acreditam no que chamo de Privilégio Cognitivo do Juiz. O juiz decide conforme a sua opinião sobre a lei e a sociedade e não a partir do que consta na Constituição. O lema do PCJ é: primeiro decido, depois busco um fundamento. Isso é o quê? Nada mais, nada menos, do que o consequencialismo que venho denunciando.

De todo modo: é uma nova magistratura, um novo Ministério Público e uma nova Polícia Federal. O futuro dirá se tenho razão. E dirá se eles têm razão, uma vez que existe uma queixa na comunidade de jurídica de que a Lava Jato atropela garantias, com excesso de prisões e o uso da delação como instrumento de pressão.

Nessa mudança de imaginário, quero dizer ainda que a maior derrotada no processo do chamado “mensalão” foi a dogmática jurídica. E também está sendo a maior derrotada na Lava Jato. O direito está sendo o que o juiz diz que é.

Explico melhor: dos anos 1980 para cá ocorreu uma transição não muito bem feita. A falta de democracia originou uma espécie de aposta no protagonismo do Judiciário em face da estrutura autoritária da legislação e do Estado. Por isso floresceu, em determinado período, um espaço que foi ocupado por teses ativistas, como o realismo jurídico e teses que apostam na livre apreciação da lei e das provas pelo juiz. Entretanto, quando foi implantada a democracia e promulgada, logo depois, a Constituição, em 1988, a dogmática jurídica não se reciclou. Ali começou o problema.

De fato, é nesses hard cases da vida (real), como a Operação Lava Jato, que os juízes revelam suas convicções pessoais sobre o direito, não esquecendo que também houve uma profunda renovação nos quadros da magistratura e do Ministério Público. A questão é saber se o direito coincide com as convicções pessoais dos juízes (e dos promotores).

Ou seja: vai tudo muito bem até que o direito (uma instituição fundante da democracia) deixa de ser um direito, para ser aquilo-que-o-juiz-entende-por-direito. É, por exemplo, quando se prende e se solta com base no mesmo argumento. Pois é: se tudo é, nada é.

Tudo isso que eu disse anteriormente acaba de se concretizar com a decisão do Supremo Tribunal Federal que, de forma ativista e contra a Constituição, passou a permitir que pessoas condenadas em segundo grau possam ser presas antes do trânsito em julgado do processo. Ocorre que o Código de Processo Penal (art. 283) e a Constituição dizem o contrário: dizem que existe a presunção da inocência. Essa decisão confirma o que eu disse: o PCJ (Privilégio Cognitivo do Juiz) foi mais forte que a lei e a Constituição. Essa decisão tem reflexos imediatos. Já no dia seguinte, acusados que aguardavam o julgamento dos recursos em liberdade passaram a ser presos. E, é claro: essa decisão do Supremo Tribunal terá reflexos muito grandes na Operação Lava Jato. Evidentemente para os que não delataram. Os que delataram receberam o seu prêmio do establishment. Por isso, 283 anos viraram pó.

*Lenio Luiz Streck é professor titular da UNISINOS-RS e UNESA-RJ, Doutor em Direito Constitucional, advogado, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional

Publicado originalmente na edição 36 do Brasil Observer