É preciso retomar o crescimento econômico o mais rapidamente possível, mas preservando a inclusão social
Por Júlio Miragaya
O Brasil precisa retomar o quanto antes o crescimento econômico, mas não a qualquer preço, e sim promovendo a inclusão social e avançando na distribuição social e espacial da renda. Somos 207 milhões de habitantes, com contrastes sociais profundos; não obstante alguns avanços na última década, mais de 35 milhões de brasileiros permanecem na pobreza. A razão de quadro social tão grave é a enorme concentração da renda e da riqueza nas mãos de uma minoria.
Segundo estudo da OXFAM, o 1% mais rico da população concentra cerca de 40% da riqueza nacional, ao passo que os 50% mais pobres detêm cerca de 3%. Nesse contexto, o Brasil persiste como um dos países de maior desigualdade, mas aqui há uma cortina de fumaça que esconde um dos principais mecanismos de concentração da renda e da riqueza: o nosso modelo tributário, altamente regressivo, economicamente irracional e socialmente injusto.
Há que se destacar que em 1988, quando o povo brasileiro tentava se livrar do arcabouço da ditadura militar, a classe dominante teve que fazer uma concessão, ainda que pequena, permitindo a instituição de um tímido sistema de seguridade social e de educação pública, que hoje ela tenta destruir. Embora tímido, é este sistema que impede que, mesmo com forte queda do PIB e do nível de emprego, não tenhamos hordas de flagelados, saques de supermercados e quebra-quebras nas periferias das metrópoles nas dimensões que ocorriam em passado recente.
Mas não há como atender as crescentes demandas sociais sem mexer em nosso arcaico modelo tributário. Não é problema e nem sequer é verdade que nossa carga tributária seja elevada ou tenha crescido de forma exagerada nos governos do PT. De 1988 a 2002, ela elevou-se de 26% para 33%, mas de 2003 a 2015, manteve-se rigorosamente neste percentual, tendo oscilado levemente para 35% em 2009.
O problema reside em que 72% da arrecadação de tributos se dão sobre o consumo (56%) e a renda do trabalho (16%), ficando a tributação sobre a renda do capital e a riqueza com apenas 28%, na contramão do restante do mundo. Na média dos países da OCDE, por exemplo, a tributação sobre a renda do capital representa 67% do total dos tributos arrecadados, restando apenas 33% sobre consumo e renda do trabalho.
Contudo, em lugar deste debate, direciona-se a discussão para uma suposta e inexistente gastança do setor público, em particular em relação às despesas com educação, saúde, previdência e assistência, responsabilizadas pelo aumento do déficit público, omitindo-se a razão maior, que são os gastos com juros da dívida pública (responsáveis por 80% do déficit nominal), as excessivas renúncias fiscais, a frustração da receita em decorrência da crise, o baixo nível de combate à sonegação fiscal e a corrupção.
Para buscar o reequilíbrio das contas públicas, propõe-se um conjunto de ações cujos efeitos negativos recairão sobre os mais pobres e a classe média. A ampliação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) para 30%, e sua extensão para estados e municípios, e a emenda do teto dos gastos (PEC 55), que estabeleceu o congelamento em valores reais das despesas, incluindo os recursos destinados à saúde e à educação, resultarão em profundos cortes nos gastos sociais, sendo que o atual volume de recursos já é insuficiente para ofertar à população um serviço de melhor qualidade e que atenda de forma plena a demanda.
Na área de saúde, por exemplo, temos uma população que envelhece rapidamente, demandando recursos crescentes, e, segundo o Fórum Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde, a medida reduzirá em R$ 650 bilhões os recursos do setor nos próximos 20 anos. O “Novo Regime Fiscal” joga o ônus do ajuste sobre as camadas mais carentes de recursos e de oportunidades e provoca redução de direitos sociais já conquistados dentre os estabelecidos em nossa Constituição.
Também a proposta de reforma trabalhista pode representar perda de direitos para dezenas de milhões de trabalhadores. O projeto de lei da terceirização, por exemplo, reverterá o avanço conseguido nos últimos anos na formalização das relações de trabalho, trazendo a precarização dessas relações. Também a prevalência do negociado sobre o legislado ameaça conquistas trabalhistas de milhões de trabalhadores, especialmente daqueles integrantes de categorias profissionais pouco numerosas e, consequentemente, representadas por sindicatos com reduzida capacidade de mobilização e negociação.
Outro retrocesso vem com a proposta de reforma previdenciária. A Previdência Social começou a ser instituída no Brasil em 1923 (com a chamada Lei Elói Chaves), portanto, há 93 anos, e é inadmissível que se busque alterar de forma tão profunda um sistema que funciona no país há quase um século “a toque de caixa”. Ademais, é inaceitável que mudanças na Previdência Social que afetarão a vida de dezenas de milhões de brasileiros fiquem a cargo de um Congresso Nacional absolutamente ilegítimo, corrupto, eleito pelo poder econômico e o mais conservador desde 1964, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP).
A proposta do Governo foca exclusivamente nas despesas, desprezando as receitas. Aliás, o equacionamento do financiamento da Previdência Social deveria começar exatamente pela receita. Também deve ser destacado o caráter conjuntural da queda da arrecadação previdenciária, decorrente da forte queda do nível de emprego em 2015 e 2016, pois tão logo a economia retome seu ritmo de crescimento, com a recuperação dos empregos formais perdidos durante a crise econômica, a receita previdenciária dos trabalhadores urbanos deverá retomar o patamar existente anteriormente à crise.
Outra falácia da proposta governamental é a de que a Previdência Social apresenta enorme déficit. O que ocorre é que o governo, propositalmente, omite que a Constituição Federal, em seu art. 195, previu um sistema tripartite, com empregados, empregadores e governo contribuindo para custear a Seguridade Social (que inclui a Previdência Social), e esta é superavitária. O governo recorre ao discurso falso e terrorista de que a reforma previdenciária é necessária e inadiável e que, se não for feita logo, não haverá dinheiro para pagar os benefícios. De forma cínica, analistas reconhecem que ela é impopular (segundo pesquisa do SPC Brasil, 73% são contrários) e, sendo assim, deve ser feita logo, por um governo impopular e em ano não eleitoral.
A proposta do governo veio ainda mais draconiana que o esperado. Equiparam-se, para efeito de aposentadoria, as mulheres aos homens e os trabalhadores rurais aos urbanos; propõe-se a desvinculação do salário mínimo em diversas situações, como o Benefício da Prestação Continuada (BPC); eleva-se a comprovação de contribuição previdenciária de 15 para 25 anos e, o mais grave, para 49 anos de contribuição para obter o direito ao benefício integral.
Caminha-se para uma proposta de Reforma Previdenciária que representa injustiças, sobretudo com a população mais pobre, ao se buscar elevar a idade mínima para aposentadoria ao patamar praticado em países com expectativa de vida bem superior à brasileira. Como sugerir que o trabalhador rural se aposente aos 65 anos se a expectativa de vida dessa população, no Norte-Nordeste, é de 63 anos?
Em suma, o país precisa retomar o crescimento econômico, mas preservando a inclusão social dos últimos anos e avançando na distribuição da renda. Experiência de crescimento do PIB, com exclusão social, tivemos no início da década de 1970, o “Milagre Econômico” sob a ditadura militar, feito a partir da retirada de direitos, da repressão política e de uma brutal concentração da renda. Não é este, certamente, o desejo de nosso povo.
- Júlio Miragaya é presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon)