Brasil inicia 2017 com onda de rebeliões em penitenciárias de norte a sul do país. Os mortos já passam de uma centena
Por Wagner de Alcântara Aragão
Uma panela de pressão que explodiu. Aliás, que segue em processo de combustão. A metáfora é válida para ilustrar a situação do sistema prisional brasileiro neste início de 2017. Desde os primeiros dias do ano até o fechamento desta edição, passavam de cem os mortos em rebeliões em penitenciárias de sete estados. Chegava à casa da centena também a quantidade dos foragidos.
De norte a sul do país, nas conversas em família, nos bares, na feira, na fila do banco, nos pontos de ônibus a sensação é a de que a situação está incontrolável. O tom pessimista, fatalista, predomina em tais rodas de conversas. Não para menos. O choque não é só pelas rebeliões, nem pela quantidade delas, que não deixa de ser assustadora. É principalmente pela violência, pela crueldade dos motins.
As fotografias e os vídeos mostram homens decapitados, corpos esquartejados, quando não carbonizados. Revelam penitenciárias sob o domínio absoluto de facções. Confirmam ambientes superlotados, insalubres, muito longe de serem espaços de detenção de criminosos e de ressocialização de condenados. As imagens apresentam para o lado de fora das grades verdadeiros caldeirões, jaulas as quais em vez de recuperar seres humanos, puni-los por seus erros, os transformam em pós-graduados no crime, em feras irracionais.
Contribui para a desolação geral a postura dos governantes. Na esteira das rebeliões, vêm denúncias de corrupção nas administrações das penitenciárias. Secretários de Estado, ministros, governadores e o presidente da República, quando não se omitem, afundam-se – e afundam o país – em declarações (e decisões) descabidas.
Michel Temer, por exemplo, só se manifestou diante da matança de presidiários três dias depois da primeira rebelião que deu início à onda de motins, a de Manaus (AM), eclodida no segundo dia do ano. Minimizando os fatos, classificou a brutalidade evidente como um “acidente pavoroso”. As rebeliões seguintes – em Roraima, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Ceará, São Paulo, Pernambuco e Paraná – comprovaram que não se tratava apenas de um “acidente”. Trata-se de um caos absoluto.
Maior aberração ainda foi a declaração do até então secretário nacional de Juventude do Governo Temer, Bruno Júlio, revelada pelo jornal O Globo. O titular da pasta, vinculada diretamente à Presidência da República e que deveria se basear em princípios humanitários, defendeu a matança em curso nos presídios. “Eu sou meio coxinha sobre isso. Sou filho de polícia, né? Tinha que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana.” Depois dessas estarrecedoras palavras e das naturais críticas que recebeu por tê-las dito, Bruno Júlio pediu demissão.
NEGAR NÃO RESOLVE
Por sua vez, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e autoridades responsáveis pela administração dos presídios estaduais têm procurado rechaçar as evidências de que as cadeias brasileiras estão sob domínio de facções como Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC), Amigos dos Amigos (ADA) e Família do Norte.
Pior: seguem negando que as prisões se tornaram praça de guerra entre essas facções, que, aliás, controlam negócios do lado de fora das grades (postos de combustíveis, cooperativas de transporte por lotação, tráfico de drogas, entre outros), fato também não admitido pelos gestores de segurança pública.
Para especialistas na área, minimizar o poder dessas facções, e dessa forma não enfrentá-lo, não resolve o problema. Ao contrário. Se negar a gravidade da situação significa não assinar atestado de incompetência do Estado, tal omissão tem permitido com que as facções, antes concentradas no eixo Rio-São Paulo, espalhem-se pelo país, ampliando e acirrando a disputa entre elas, por domínio territorial.
O próprio PCC, protagonista da atual onda de rebeliões, quando se constituiu, há mais de duas décadas, estava restrito a São Paulo. À medida que foram promovendo rebeliões, seus integrantes foram sendo transferidos para unidades em outros estados, e nelas se estabelecendo, ramificando-se.
MEDIDAS PALIATIVAS
Não há mínimos sinais de que a crise será resolvida tão cedo. As medidas anunciadas até agora – o uso da Força Nacional de Segurança e a criação de um “grupo nacional de intervenção penitenciária” para combater os motins em andamento – estão soando mais como ações protocolares e paliativas. Até porque entre o anúncio de tais medidas e a efetiva implementação delas a matança e as fugas seguem em massa.
O uso da Força Nacional de Segurança, por exemplo, foi decidido pelo governo em 18 de janeiro, mas só no final do mês de fato integrantes do Exército, Marinha e Aeronáutica passaram a estar em ação. “Os homens [das Forças Armadas] estarão à disposição dos governadores para procurar e apreender armas, drogas, aparelhos celulares e outras substâncias e produtos ilícitos”, declarou à imprensa o ministro da Defesa, Raul Jungmann.
Especialistas em segurança pública e juristas têm o pé atrás quanto à atuação das Forças Armadas em distúrbios civis e urbanos, como as rebeliões em presídios. Em tese inconstitucional – a segurança pública ostensiva é dever das unidades de federação e suas polícias –, o uso das Forças Armadas é questionado porque militares do Exército, Marinha e Aeronáutica são preparados para combates com inimigos externos, em situações de conflitos bélicos. Em desvio de função, é grande o risco de cometerem excessos. O presidente Michel Temer, em declaração pública, argumentou que os homens das Forças Armadas não entrarão em contato com rebelados. “[As Forças] não terão evidentemente contato com os presos, mas terão, isto sim, a possibilidade da inspeção em todos os presídios brasileiros.”
PLANO NACIONAL
Como que buscando dar uma resposta à assustada sociedade, o Ministério da Justiça anunciou também um conjunto de objetivos e medidas a compor um Plano Nacional de Segurança Pública. Em teoria, o plano fala em três propósitos básicos: “redução de homicídios dolosos e de feminicídios; o combate integrado à criminalidade organizada internacional (em especial tráfico de drogas e armas) e ao crime organizado dentro e fora dos presídios; e a racionalização e modernização do sistema penitenciário”.
Apesar de, em tese, inspirar otimismo, ao se analisar a realidade tem-se o pé atrás quanto à viabilidade e a efetividade de um plano como esse anunciado no calor do pavor nacional. Primeiro, porque o plano dá muita ênfase a operações de forças de segurança, ignorando que a violência pública decorre acima de tudo de problemas sociais como a desigualdade econômica, o desemprego, a falta de perspectivas. Segundo, porque é de se perguntar como um governo que fez de tudo, e conseguiu aprovar no Congresso, uma emenda constitucional que congela os investimentos públicos por 20 anos, poderá agora sustentar um plano que requer, evidentemente, recursos financeiros extraordinários.
Ademais, na avaliação de especialistas e de entidades como a Pastoral Carcerária, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a atual tsunami de motins nos presídios brasileiros é mais do que uma crise conjuntural, a ser resolvida com medidas pontuais. É, na verdade, resultado da falência do sistema prisional do país.
Em nota divulgada no último dia 24, a Pastoral Carcerária denuncia a “sistemática violação de direitos” nas penitenciárias, pano de fundo da violência agora escancarada nas rebeliões que se sucedem desde janeiro. “O principal produto do sistema prisional brasileiro sempre foi e continua sendo a morte, a indignidade e a violência”, frisa a nota. “Esse massacre se desenrola há tempos.”
A Pastoral Carcerária continua: “Em números bastante subestimados, fornecidos pelas próprias administrações penitenciárias, no mínimo 379 pessoas morreram violentamente nas masmorras do país em 2016, sem que qualquer ‘crise’ fosse publicamente anunciada pelas autoridades nacionais (…) Não foi por falta de avisos ou ‘recomendações’ que as pessoas privadas de liberdade deixaram de ser mortas e vilipendiadas em sua dignidade.”
TORTURA
A Organização das Nações Unidas (ONU), em relatório divulgado em agosto de 2015, já alertava para os riscos de explosão do sistema prisional brasileiro. Inspeções feitas pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU apontavam que a prática de tortura nas detenções era “endêmica”, assim como a superlotação das cadeias. A população carcerária cresceu rapidamente nas últimas décadas, fazendo com que o Brasil seja hoje o quarto país do mundo em número de presidiários. O aumento da população carcerária não foi, entretanto, acompanhado da expansão da infraestrutura do sistema.
Agora em janeiro, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), diante da onda de motins nos presídios brasileiros, reafirmou essa avaliação de caos do sistema carcerário do Brasil. O representante regional para América do Sul da ACNUDH, Amerigo Incalcaterra, em nota oficial condenou os massacres em curso, pedindo “imediata investigação dos fatos, visando à atribuição de responsabilidades pela ação e omissão do Estado, principal responsável pelos presos sob sua custódia”.
Diz o representante da ONU: “A ausência de implementação de uma política penal e carcerária de acordo com as normas internacionais de direitos humanos no Brasil tem sido apontada de forma reiterada pelos órgãos das Nações Unidas, o que leva a uma crescente crise do sistema penitenciário no país. Essa crise é evidenciada pelos recentes episódios de massacres”.