“Nosso propósito é causar esse estranhamento”

brasilobserver - set 18 2015
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Ondenunca Beckett, da companhia carioca Café Cachorro, representa o Brasil no CASA Latin American Theatre Festival

 

Por Guilherme Reis

Três atores. Dois módulos. Uma cadeira. Alguns objetos. No quadrado branco que serve de piso, figuras e formas estão em movimento. A luz se transforma em sombra e o som, em silêncio. Nesse espaço/tempo algo inominável pode acontecer: os corpos criam.

Ondenunca Beckett é uma obra teatral experimental livremente inspirada na vida e na obra do escritor irlandês Samuel Beckett. “É como se nós três entrássemos na mente de Beckett e fossemos vasculhando esse espaço, vendo fragmentos, memórias e coisas que teriam dentro desse mundo da mente criativa dele. Como se lançássemos luz na escuridão do pensamento de Beckett”, explicou Leandro Fernandes, ator e diretor, em entrevista ao Brasil Observer.

Bruno Paiva e Leonardo Bastos completam a trupe. “A companhia somos nós três: atores, diretores, tudo”, esclareceu Leandro, sem deixar de mencionar alguns colaboradores que fizeram a peça virar realidade, como os iluminadores João Marcelo Pallottino e Ricardo Grings, a figurinista Daniela Sant’Mor e Stephany Simões, que vai acompanhar os três atores/diretores durante a viagem a Londres.

Sobre o convite para estar no CASA Festival, Leandro contou: “Em 2012 eu estava em Londres e recebi um flyer do CASA na rua. Então eu guardei isso, mas guardei mesmo, tinha até esquecido. Dois anos depois já estávamos fazendo o espetáculo e começamos a inscrevê-lo em todos os festivais que podíamos, inclusive na Europa. Ficamos de olho na convocatória do CASA, inscrevemos a peça e pouco depois o Daniel Goldman [diretor artístico] nos contatou interessado”.

 

‘WORK IN REGRESS’

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Levados por uma imensa paixão por Samuel Beckett, os três fizeram uma extensa pesquisa através do estudo de seus romances, peças, peças curtas, novelas, poemas, sua biografia por James Knowlson, cartas, livros de teoria, ensaios e demais referências significativas. “Pegamos algumas coisas que identificavamos como características de criação dele – formas de criar, formas de explorar os objetos, as figuras, o espaço, o tempo – e naturalmente acabamos ligando às nossas formas, nossas bagagens teatrais”, disse Leonardo Bastos.

O resultado: uma peça de 45 minutos que flerta com a dança e as artes plásticas. Não há nenhuma fala no espetáculo, nenhum texto verbal, a não ser uma gravação de Samuel Beckett falando em off. Tudo gira em torno do movimento, da presença do ator e da experiência de tempo e espaço, em um processo que vai de encontro ao vazio, à ideia de escassez. “Chamamos nosso processo de ‘work in regress’, por conta da retirada de elementos”, revelou Leonardo.

A falta de fala, aliás, é um fator positivo quando se pensa que o público do CASA Festival não necessariamente entende o idioma português. A linguagem de Ondenunca Beckett é universal. Trata-se de uma peça de formas, da poesia do corpo no espaço, da forma como conteúdo e vice-versa, da estética como ato político em si.

Sobre o que esperavam das apresentações em Londres, Bruno Paiva comentou: “Estamos com uma expectativa bem grande de ver como será a reação do público por aí, por ser uma plateia diferente. Mas aqui no Brasil também apresentamos a peça para públicos distintos. Em São Paulo, por exemplo, ouvimos de tudo. Uma menina falou que ficou muito irritada com a gente, ela disse: ‘quando eu começava a entender alguma coisa vocês desconstruíam tudo’. Outra pessoa falou: ‘pra mim vocês não são os protagonistas da peça, pra mim os protagonistas são os módulos que vocês usam’”. Para Leonardo Bastos, “rola uma coisa de não conseguir explicar porque não é algo que se entende, mas sim algo que simplesmente se sente”. “Nosso propósito é causar esse estranhamento, uma sensação que vem da contemplação da dinâmica que é colocada”, disse Leandro Fernandes.

 

O REAL ABSURDO

Aproveitando o tom político que sempre permeia as edições do CASA Festival, questionei os três integrantes da Companhia Café Cachorro sobre como eles enxergavam o atual momento vivido pelo Brasil. Disse a eles que havia acabado de ler um artigo de Fernando Gabeira, no site jornal do O Globo, intitulado “Dilma no teatro do absurdo”, e que gostaria de saber a opinião pessoal deles a respeito.

Leonardo Bastos começou: “Acho interessante porque quando surge o termo Teatro do Absurdo, ele dá essa distanciada da realidade, ele lê as coisas que estão acontecendo no palco como coisas absurdas justamente por não fazerem parte do teatro que estava em voga na época. Gostamos muito do Beckett porque identificamos no trabalho dele as nossas sensações, as nossas vontades, muito mais reais do que absurdas. Então fazendo esse paralelo com a Dilma eu acho que estamos um pouco nesse lugar de que parece que é um absurdo, mas é porque agora está mais próximo da realidade. A corrupção sempre existiu naquele lugar obscuro, distante, mas agora deixou de ser absurdo, está mais perto. Aí vem o estranhamento, a revolta…”.

“Há várias camadas nessa discussão. Os protestos na orla de Copacabana, por exemplo, trouxeram algumas situações estranhas em que as próprias pessoas foram mais absurdas do que o absurdo que está acontecendo, porque elas não sabem exatamente o que está acontecendo nem por quais motivos estão lá”, opinou Bruno Paiva.

Leandro Fernandes sintetizou: “Estamos vivendo um processo de limpeza, então vai surgir muita coisa ainda, porque é o único jeito de reorganizar a sociedade, mas ainda estamos na fase da confusão”.

Absurdos à parte, há esperança. “É muito interessante pensar, apesar disso, na quantidade de pessoas criando uma rede de mobilização para viabilizar uma resistência, que sempre existe. No meio desse caos todo tem surgido muita luz, as pessoas se unindo. Você vê uma crise de consciência em cada esquina”, comentou Leandro.

De volta à peça, Ondenunca Beckett se justifica, nas palavras dos próprios realizadores, da seguinte maneira: “É isso que temos. Felicidade imensurável diante do caos das possibilidades. É preciso deleitar isso. Nunca achar o lugar das coisas. Não saber o que fazer e ainda assim fazê-lo. Criar. Dar forma às ideias. Experimentar! Quanta beleza nessas tentativas falhas. Encontrar a fonte no interior do outro. Voltar-se para a trilha solitária. Compartilhar essa solidão. Seguir. Seguir fazendo. Sair das águas rasas. Adentrar o mistério. Um caminho para ONDE e para NUNCA. Nunca saber. Ainda assim perguntar. Perguntar com o corpo. Amor. Rigor. Liberdade. Teatro”.

 

ONDENUNCA BECKETT

Quando: 8-9 de outubro

Onde: Rich Mix (35-47 Bethnal Green Rd, E1 6LA)

Entrada: £12 adiantado; £15 na porta

Info: www.casafestival.org.uk

Brasil Observer é um jornal brasileiro publicado em Londres. Leia a edição 31.