A tragédia de quem não quer perder a esperança

brasilobserver - set 18 2015
Hungary: Budapest, 4 September 2015 

In response to hundreds of refugees and other migrants taking to the road with the aim of walking to Austria, Hungarian Red Cross immediately activited its response teams. The Red Cross has been providing food, water, blankets, clothes and first aid to those in need along the main highway from Budapest to Austria. 

Over 140,000 people have applied for asylum in Hungary already in 2015. In recent weeks, the number of people arriving in the country has increased dramatically, resulting in a major bottle neck and leaving hundreds sleeping rough at train stations each night. 

Photo: Stephen Ryan / IFRC
Milhares cruzaram a fronteira da Hungria com a Áustria dia 5 de setembro; voluntários Húngaros da Cruz Vermelha distribuíram bebidas quentes, cobertores e roupas à prova d’água (Foto: Stephen Ryan/IFRC)

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Para professor de relações internacionais Jorge Mortean, só há uma solução para crise migratória: que os países estrangeiros parem de financiar conflitos nos países de origem dos refugiados

 

Por Andreia Verdélio – da Agência Brasil

A imagem do menino sírio Aylan Kurdi, de 3 anos, morto em uma praia da Turquia chocou o mundo e fez com que a crise migratória na Europa ganhasse mais repercussão internacional. Ele, o irmão de 5 anos, a mãe e outros refugiados morreram afogados ao tentar alcançar a ilha grega de Kos. O foco agora está nos líderes europeus e nos debates sobre as soluções para controlar o fluxo de refugiados.

Mas a história da família Kurdi e de muitas outras que morreram no Mar Mediterrâneo e em rotas terrestres, saindo do Oriente Médio e da África, começa com as guerras e conflitos nessas regiões. A Síria é o principal país de origem de refugiados, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), com 3,88 milhões, só até o final de 2014. No mundo são quase 60 milhões de pessoas que foram forçadas a deixar seus países, metade delas jovens e crianças.

A porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Dibeh Fakhr, disse que o conflito na Síria já dura cinco anos e que a situação humanitária no país permanece “catastrófica”. “Há enormes necessidades por todo o país. A guerra continua e afeta mais fortemente civis”, afirmou, explicando que mais de 7 milhões de pessoas estão sendo afetadas e mais de 4 milhões deixaram o país.

O conflito na Síria, entre rebeldes e governo, também tem o envolvimento direto do grupo Estado Islâmico, que tenta derrubar o presidente Bashar Al Assad. A assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil, Fátima Mello, disse que a população é atacada e usada por essas forças, estando exposta a ataques químicos, detenções, torturas, desaparecimentos e prisões. “Os civis estão expostos a gravíssimas violações de direitos humanos”.

 

ORIGEM E SOLUÇÕES

Segundo o geógrafo e professor de relações internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado, Jorge Mortean, esse movimento entre a migração de pessoas de regiões em conflito e os países desenvolvidos é retroalimentante. “Os conflitos locais, no Oriente Médio, são causados pela própria interferência e interesse das potências mundiais, principalmente pela demanda energética, pela extração e compra de petróleo e gás natural. Os ocidentais direta ou indiretamente estão fomentando esses conflitos e acabam gerando esse fluxo de pessoas que tentam entrar na Europa”, argumentou.

O professor explicou que, estremecendo a política doméstica o preço do petróleo tende a subir, influenciando o mercado mundial. Com os governos locais enfraquecidos, segundo Mortean, a força econômica também penetra melhor na indústria petrolífera local. “Fica um jogo dúbio. O governo local ganha [com a venda] e as potências econômicas não deixam de lucrar [com o mercado aquecido]”.

O custo que esses países têm despendido para fomentar as diversas facções e governos envolvidos no conflito, com armas, dinheiro e treinamento, é baixo, comparado aos lucros. Mas, segundo o professor, em determinadas situações essa equação se inverte. “O problema é que isso chegou a uma curva e agora o processo se inverte e não é mais tão vantajoso porque o custo social [de acolher os refugiados] está maior que o custo econômico”, explicou.

“A diplomacia tem um lado que não dá pra ver, esse lado é o que realmente acontece e que, muitas vezes, não pode ser resolvido. Os grandes financiadores de conflitos no Oriente Médio, África, Ásia e até na América Latina são os que estão sentados nas cinco cadeiras permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas”, disse.

Para Mortean, acolher os refugiados é uma medida paliativa, só há uma solução para essa crise migratória: que os países estrangeiros parem de financiar os conflitos nos países de origem dos refugiados.

Já Fátima Mello entende que é preciso um esforço multilateral para desenvolver economicamente esses países, além de “sinais mais contundentes” de participação do Conselho de Segurança da ONU.

 

REFUGIADOS NA EUROPA

A assessora da Anistia Internacional Brasil disse ainda que o número de refugiados que chegam à Europa parece alto, mas são baixos se comparados a países vizinhos da Síria, que já receberam quase 4 milhões de refugiados sírios. Isso fez como que países como Líbano e Jordânia fechassem suas fronteiras, controlando quem entra.

Fátima Mello explica que a União Europeia é signatária de todo tipo de acordo internacional humanitário, de concessão de asilo, e, para conseguir reduzir o número de pessoas que morrem nas suas fronteiras, tem a obrigação de aumentar os vistos de assentamento. Entretanto, segundo ela, os países de entrada na Europa têm fechado suas rotas por terra, o que agrava a situação das travessias pelo Mar Mediterrâneo, para a Espanha, Itália e Grécia principalmente.

“O número de refugiados e imigrantes via marítima tem aumentado muito. Os sírios totalizavam 46% das 176 mil pessoas que chegaram à Itália pela ilha de Lampedusa. É o país que, de longe, recebe mais refugiados por mar. Recomendamos que a Europa realize operações humanitárias envolvendo os vários países, mas que sejam operações que forneçam à Itália suporte logístico e financeiro”, disse.

Por terra, a Hungria é a porta de entrada para migrantes e refugiados, pois o país é signatário do Acordo de Schengen, de países europeus onde se pode transitar livremente sem passaporte. Para tentar barrar a entrada dessas pessoas, o governo húngaro construiu uma cerca de arame farpado, vigiada por policiais, ao longo da fronteira com a Sérvia. E para aqueles que conseguem entrar na Hungria, a saída para os países mais ricos da Europa Ocidental está sendo limitada às estações de trem em Budapeste. Segundo o professor Jorge Mortean, o Acordo de Schengen já passou por algumas mudanças, tornando-se mais rígido dependendo da nacionalidade do cidadão, e é provável que haja novas alterações.

Pio Penna, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília, disse que existe um impasse para manejar essa liberdade nos países de entrada (Espanha, Itália, Hungria, Grécia), pois os países para os quais os refugiados pretendem ir, como França, Itália, Reino Unido, Alemanha, Áustria, estão dificultando a entrada.

Associada a essa dificuldade existe ainda, segundo Penna, o problema do tráfico de pessoas. “A maior parte dos refugiados segue rotas abertas ou manejadas por pessoas ligadas ao tráfico humano, e essa gente não tem princípios, e aí acontecem outros acidentes”. No final de agosto, 50 pessoas foram encontradas mortas em um caminhão frigorífico na Áustria. O porto da cidade de Calais, por onde passa o Eurotúnel rumo ao Reino Unido, também é rota de atravessadores.

 

PAÍSES DE ORIGEM

Além da Síria, os especialistas citam o Iraque e a Líbia como os países de origem de muitos refugiados. Segundo Mortean, a Líbia sempre foi um canal de migração ilegal, mas com a derrubada do governo e morte de Muammar Kaddafi, em 2011, o país passou a viver uma crise interna, dividido em mais de 13 tribos que buscam o poder. “Com vários grupos sociais se armando, dá brecha para o surgimento de forças terroristas externas, como o Estado Islâmico”.

O professor explica que o Iraque também sofre com as investidas do Estado Islâmico. “O governo iraquiano ficou um pouco enfraquecido com a saída das tropas americanas no ano passado. É um governo fragmentado por causa dos curdos, que têm a autonomia no Norte do país”, disse Mortean. Muitos iraquianos têm se refugiados no Kwait.

Já Fátima Mello relaciona também as longas crises econômicas de países africanos e o extremismo religioso como fatores que levam as pessoas a abandonar seus países. “Desde o período da colonização as pessoas são expostas a violações e passam por situações de fome e de insegurança de todos os tipos. Agora, soma-se a radicalização por parte do extremismo religioso, como Boko Haram, e tudo isso expulsa as populações de suas casas e seus países de origem”.

 

Brasil tem boa política de acolhimento de refugiados, dizem especialistas

A crise migratória na Europa chama a atenção do mundo, mas o fluxo migratório de regiões em guerras não é incomum e o Brasil é um dos países com uma boa política de acolhimento, segundo especialistas.

“A Anistia Internacional e a própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos elogiam bastante o Brasil e o Uruguai por terem resoluções de acolhimento de refugiados sírios”, disse a assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil, Fátima Mello.

Segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça, o número de refugiados no Brasil praticamente dobrou nos últimos quatro anos, passando de 4.218, em 2011, para 8.400, em 2015. As principais causas dos pedidos de refúgio são violação de direitos humanos (51,13%,) perseguições políticas (22,5%), reunião familiar (22,29%) e perseguição religiosa (3,18%).

Os sírios formam o maior contingente de refugiados no país, com 2.077 pessoas, seguidos pelos angolanos (1.480), colombianos (1.093), congoleses (844) e libaneses (389). O levantamento não inclui informações sobre os haitianos, uma vez que essas solicitações de refúgio têm sido analisadas pelo Conselho Nacional de Imigração para autorização da permanência por razões humanitárias.

De acordo com reportagem da BBC Brasil, “o número [de sírios acolhidos no Brasil] é superior ao dos Estados Unidos (1.243) e ao de países no sul da Europa que recebem grandes quantidades de imigrantes ilegais ─ não apenas sírios, mas também de todo o Oriente Médio e da África ─ que atravessaram o Mediterrâneo em busca de refúgio, como Grécia (1.275), Espanha (1.335), Itália (1.005) e Portugal (15). Os dados da Eurostat referem-se ao total de sírios que receberam asilo, e não aos que solicitaram refúgio”.

Do total de refugiados acolhidos em território brasileiro, 70,7% são homens e 29,3%, mulheres. Segundo o levantamento, 65,62% têm entre 18 e 39 anos, 19% têm até 17 anos, 13,5% têm entre 40 e 59 anos, enquanto 1,86% dos refugiados têm 60 anos ou mais. Mais de 12,6 mil solicitações ainda aguardam julgamento do Conare.

O geógrafo e professor de relações internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado, Jorge Mortean, disse que o Brasil, por ser um país formado por imigrantes, não poderia deixar de acolher essas pessoas. “A nossa população local indígena ou morreu fuzilada ou por doenças. Depois começou um projeto de imigração através da infeliz escravatura e colonização portuguesa; e, após a abolição, a recolonização com asiáticos e europeus. Até por esse processo histórico temos umas das melhores políticas de acolhimento. E seria absurdo um país como esse virar as costas para os refugiados, apesar de não termos responsabilidade por nenhuma das partes”.

Segundo Mortean, é certa essa conduta de “abraçar” os imigrantes, mas a sociedade ainda não é tão receptiva. “O brasileiro ainda pensa com a mentalidade de país colonizado, mas, no fundo, somos todos migrantes. A sociedade brasileira tem uma reticência porque acredita que o migrante vai sobrecarregar um Estado que é falido. Ainda bem que o governo não adota isso e está com as portas abertas”.

Para o professor de relações internacionais da Universidade de Brasília, Pio Penna, o Brasil recebe bem o refugiado, ainda um número pequeno, mas é preciso melhorar a estrutura de acolhimento. “Pelo tamanho e pela projeção internacional do Brasil, podemos ter um fluxo maior no futuro, inclusive de refugiados ambientais, de pessoas saindo de seu lugar de origem por falta de condições lá”.

Brasil Observer é um jornal brasileiro publicado em Londres. Leia a edição 31.