“Literatura é quase tudo que um ator pensa entre as falas”

brasilobserver - set 18 2015
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Por Gabriela Lobianco

A versão inglesa da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a FlipSide, parece realmente ter dado certo. Pelo terceiro ano consecutivo, o festival derivado do evento brasileiro se hospeda em Snape Maltings, pequena cidade do sudoeste da Inglaterra, entre 2 e 4 de outubro. E, como nos anos anteriores, traz autores brasileiros.

A dupla brasileira que compõe o quadro de estrelas desta edição está tarimbada em diversas feiras e simpósios de literatura mundo afora: Cristovão Tezza e Fernanda Torres. Autor de livros premiados, aclamado com seu romance semibiográfico “O Filho Eterno”, lançado em pelo menos oito países, Tezza é um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos. Já a renomada atriz e escritora Fernanda Torres, que conversou com exclusividade com o Brasil Observer, tem mostrado que, no universo das letras, consegue ser uma artista tão completa quanto no palco ou diante das câmeras.

Humilde e supersimpática, Fernanda contou que o convite para participar da FlipSide ocorreu por conta da Flip, mas que não sabe muito bem de quem foi a ideia. “Passei anos vivendo o teatro. O meio literário eu boio”, disse, justificando não conhecer os autores com quem irá debater. O mistério sobre o convite, porém, não foi tão difícil desvendar. Liz Calder, idealizadora do festival tanto no Brasil quanto na Inglaterra, disse que ficou encantada quando escutou a Fernanda Torres na Flip, e que não pensou duas vezes ao chamá-la para repetir a dose do outro lado do oceano. “Ela era tão articulada, engraçada, inteligente, divertida, e ao mesmo tempo séria e provocadora, que tive certeza que seria um sucesso na FlipSide”.

Modéstia à parte, no ano passado Fernanda Torres foi citada pelo colunista do jornal The Gardian, Ángel Gurría-Quintana, como uma das autoras brasileiras cujo romance de estreia, “Fim”, precisava ser traduzido para o inglês. “Jamais esperei escrever um romance, mas ele aconteceu por ele mesmo”, disse Fernanda sobre o livro.

“Fim” gira em torno da história de cinco amigos cariocas. São figuras muito diferentes, mas que partilham não apenas o fato de estar no extremo da vida, mas a limitação de horizontes. Sucesso na carreira, realização pessoal e serenidade estão fora de questão – ninguém parece capaz de colher mais do que um inventário de frustrações. Há graça, sexo, sol e praia nas páginas de “Fim”. Mas elas também são cheias de resignação e cobertas por uma tinta de melancolia.

Fernanda Torres também tem um livro de crônicas, “Sete Anos”. São textos publicados em revistas e jornais, que versam sobre cinema, teatro, política ou assuntos do cotidiano, mas sempre com suas marcas características: o humor, o tom confessional, o olhar irônico.

 

TRADUZIR OU NÃO TRADUZIR

“Leio em inglês e em português”, respondeu Fernanda Torres de pronto quando perguntada. E logo deu uma sugestão de livro excelente que está lendo no momento, “Please Kill Me”, de Legs McNeil e Gillian McCain. “É a história do movimento punk numa edição especial que tem depoimentos de pessoas como o Iggy Pop, o Ramones, a Debi Harry, todos com falas em primeira pessoa”.

Voltando ao assunto da FlipSide, o debate do qual a escritora vai participar ao lado de Daniel Hahn, autor, tradutor e presidente da Society of Authors, será em volta do tema tradução. “Acho dificílimo traduzir porque cada palavra tem cinquenta possibilidades”. E continuou se amparando em algo que conhece bem: atuar. “Na verdade, a literatura é quase tudo que um ator pensa entre as falas”.

Fernanda Torres comentou ainda os inúmeros textos de William Shakespeare traduzidos do inglês para o português. “A gente tem muito Shakespeare traduzido no Brasil que é incompreensível”. Para ela, muito da cultura de um povo se perde na tradução. “O sentido de realeza, por exemplo, para o brasileiro é muito difícil de traduzir, por isso [Shakespeare] se perde um pouco para nós. Por outro lado, ficariam inadequadas certas questões de poder numa favela”, reflete.

Sobre quando o seu livro “Fim” terá uma versão em inglês, a atriz confirma que os direitos já foram comprados por uma editora americana. “Sou a única autora que vou [para a FlipSide] com um livro sem tradução para o inglês, vou mesmo pelo prazer de estar lá e por participar”, disse. E, ao ser lembrada de que há muitos brasileiros no exterior, foi categórica: “Espero que eles tenham lido o livro”.

Nessa questão, aliás, entra o fato de o Brasil não ser muito conhecido no exterior por sua arte, como a literatura, por exemplo. Para Fernanda Torres, o Brasil é uma ilha cultural, um gigante que fala quase um dialeto, o português, num continente dominado pelo espanhol. “Esse fechamento acaba por ser ao mesmo tempo a sua maior riqueza e seu maior isolamento. A literatura do Brasil fora do país com certeza vai crescer, porque existe e é interessante”.

Brasil Observer é um jornal brasileiro publicado em Londres. Leia a edição 31.