Blog: Conectando Voltar a lista de posts

Troca de inimigo

Brasil Observer - Oct 10 2016
Serra de Paranapiacaba, Tapiraí, SP. DUPLA.
Serra de Paranapiacaba, Tapiraí (Fotos: Serra de Paranapiacaba)

(Read in English)

 

A história de um Brasil que luta para sobreviver

 

Por Leila Gapy – de São Miguel Arcanjo, São Paulo

O sol nem precisa se despedir para a lua fazer sua morada no céu ainda anil. O som da cidade ficou a 33 quilômetros pela estrada íngreme de cascalho. As árvores mais altas do mundo, em verde degrade, balançam para lá e para cá como orquestra, a água faz o curso rápido pelas pedras limbosas e as aves arco-íris avisam a chegada da noite negra, porém estrelada. Pois é, não há silêncio na mata. Mas é lá, em meio ao caos natural, que habita a paz e o ser humano se rende à majestade. É o coração brasileiro, um coração verde chamado Parque do Zizo, que fica em São Miguel Arcanjo, cidade a 200 quilômetros de São Paulo, sentido sul do Estado.

Trata-se de uma reserva particular de 118 alqueires (2,3 mil metros quadrados), localizada no maior contínuo de Mata Atlântica remanescente do Brasil. Um mosaico composto pelos Parques Estaduais Petar, Intervales, Nascentes do Paranapanema, Carlos Botelho e pela Estação Ecológica de Xitué, que juntos passam dos 250 mil hectares de mata preservada. E ali no meio, com 60% do território intocado pelo homem, o Parque do Zizo mantém o restante catalogado com nascentes, cachoeiras, lagoas e mirantes disponíveis à visitação e pesquisas. Um coração pulsante protegido pela família Balboni, que há quase 18 anos luta para manter a área.

Só para se ter uma ideia, já foram catalogados no parque mais de 350 espécies de pássaros raros, além de outros animais, como onça pintada, mico leão preto e muriqui (maior primata das américas), todos ameaçados de extinção. É ali que os Balbonis fazem cerco aos chamados palmiteiros, grupos de extração ilegal do palmito Jussara (Euterpe edulis) – também ameaçado de extinção e nativo da Mata Atlântica –, que insistem ameaçar não só o parque, mas as Unidades de Conservação também.

Picam a mata, abrem caminhos e clareiras, fazem fogueiras, caçam para comer e cozinham os palmitos, fomentando a rede clandestina de alimentos livres de impostos e impróprios para o consumo, vista a ameaça da bactéria Clostridium botulinum (oriunda da falta de higiene e que provoca o botulismo). Os mantenedores do sistema? Desde os menores e individuais consumidores até os maiores comércios do país, passando por pizzarias e restaurantes, inclusive os elitizados. Para inibir, além de evitar o confronto, a estratégia é buscar o diálogo junto aos palmiteiros e projetos que incentivam a produção do Jussara de forma consciente nas comunidades ribeirinhas.

Além disso, há incentivo à educação ambiental, disponível para alunos do ensino fundamental e universidades. Uma iniciativa que se espalha pelas reservas particulares e pelas Unidades de Conservação estaduais, visando transformar a ameaça em aliada. Tudo em nome da preservação da mata, responsável pela existência e sobrevivência da raça humana. Uma luta travada dia-a-dia pelos Balbonis em nome de seu principal membro, o que dá nome ao parque. Um lugar adquirido com indenização do Estado brasileiro às famílias de mortos e desaparecidos durante a Ditadura Militar brasileira (1964/1985). Não é de hoje que a família pensa no bem comum social.

 

EM NOME DA LIBERDADE

Iniciada com o casamento de seu Luiz, um empresário autodidata que se fez sozinho, e dona Francisca Áurea, estudiosa dona de casa, a família cresceu em São Miguel Arcanjo (SP) com oito filhos, sendo Luiz Fogaça Balboni, o Zizo, o mais velho. Aprumado, como diziam, e inteligente, cresceu vendo os pais trabalhando na roça e adolescente foi estudar na capital – sendo seguido por mais dois irmãos, Aldo e Vital. Mais tarde, estudante da Universidade de São Paulo (USP), já na década de 1960, Zizo vivenciou o cenário político da época, o golpe civil-militar. Com espírito livre e justiceiro, como definem os que o conheceram, se aliou à Ação Libertadora Nacional (ALN).

Ingressou na sequência no Grupo Tático Armado (GTA), o mesmo de Carlos Marighella. Ele sabia que a guerra urbana crescia e deveria ser levada ao campo. Foi morto numa emboscada armada pelo o delegado Sergio Paranhos Fleury, o Matador. A família foi devastada, taxada e hostilizada. Ele rotulado de terrorista a fim de evitar que qualquer outro membro da família se arriscasse se envolver com a resistência. Mas já era tarde. Aldo, segundo filho do casal, também foi torturado durante semanas no Departamento de Ordem e Política Social (Dops-SP), logo após o enterro do irmão.

Vital, que aguardava orientações de Zizo, antes de sua morte, para entrar no GTA, teve de se afastar às pressas e tempo depois rumou para a Europa. Zizo defendia o sonho de um país livre e igualitário, com oportunidades como as que teve, com infância feliz e estudos. Não chegou a vê-lo. Foram quase 30 anos até que os Balbonis obtivessem uma resposta e descobrissem o que houve com uma testemunha que sobreviveu. Manoel Cyrillo, responsável pelo sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, e que possibilitou a libertação de dez guerrilheiros. O depoimento de Cyrillo descortinou a sombra da família.

Zizo havia sido pego, torturado, fuzilado e morto em 25 de setembro de 1969. Suas declarações em 1996 possibilitaram a indenização da família em 1998 e a criação do Parque do Zizo no ano seguinte. Os 200 mil dólares encaminhados aos Balbonis não quitaram o ônus da perda. Menos ainda a alienação social sofrida. Mas possibilitou que dona Auréa colocasse, com orgulho, a foto do filho falecido na parede da sala e rezasse uma missa em sua memória com as portas da casa abertas. O dinheiro também fez com que a memória de Zizo fosse preservada, hoje por meio de 18 herdeiros que cuidam da Associação Parque do Zizo (Apaz) – que delimita os rumos da área e impede a degradação do parque, além de priorizar a educação ambiental.

 

A MAIS RICA FLORESTA

This slideshow requires JavaScript.

Conduta que ilustra a luta de uma minoria pela manutenção da mata brasileira. Sim, uma minoria, encabeçada não só pelo governo estadual por meio dos parques, mas também pelas poucas iniciativas privadas, além do Zizo, como do Parque Rio Taquaral e Parque da Onça Pintada, ambos em São Miguel Arcanjo – nem 10% da mata que ainda existe e que não é protegida. A história do descobrimento do Brasil é a história da devastação da Mata Atlântica. Cada ciclo do desenvolvimento resultou na redução da floresta que atualmente soma apenas 8,5% da mata original. Área composta inicialmente de 1,3 milhão de quilômetros quadrados e que se estendida por 17 estados.

Tida hoje como floresta Hotspot mundial, uma das mais ricas biosferas do planeta, principalmente quanto aos recursos hídricos. E também a mais ameaçada, sendo a localização de 55% dos animais brasileiros na lista dos ameaçados de extinção. Uma Reserva da Biosfera pela Unesco e Patrimônio Nacional pela Constituição Brasileira de 1988 que gera economia de base e renda, por meio da agricultura, extrativismo e turismo a mais de 72% da população, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), de 2014. Floresta preservada pelos governos Federal e Estadual há cerca de 40 anos e que tem como principal concorrente o cidadão, vista que as iniciativas para preservação e manutenção necessitam de reflorestamento.

 

LUTA ETERNA

No último mês de agosto, por exemplo, o mundo inteiro voltou seus os olhos para o Brasil, palco dos Jogos Olímpicos. A oportunidade foi agarrada com unhas e dentes pelo Comitê Organizador, que não perdeu a chance de mandar seu recado principal, tanto na abertura, no dia 5, quanto no encerramento, dia 21: a necessidade urgente de preservação, manutenção e restauração do meio ambiente. A iniciativa foi criticada, já que dentro do próprio país há contradições. Pede-se cuidado com a mata, destaca-se a necessidade de preservação para o futuro, refere-se à degradação inconsciente e mal-educada.

Mas não cria, por exemplo, mecanismos eficientes para execução da Política Nacional de Resíduos Sólidos e coleta seletiva – que depende da junção das mãos dos governos e dos cidadãos para promover a mudança cultural; não pune os responsáveis municipais pelos 29% de aumento na produção de lixo e dos ainda 41% dos resíduos destinados inadequadamente aos aterros – dados de 2014 em comparação a 2013, segundo Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil de 2014, da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Esse desequilíbrio não tange somente a sustentabilidade, o consumo consciente, a preservação e manutenção de suas florestas.

Mas ao caos político que incomoda a liberdade e esbarra na censura quando não se respeita as urnas, retira benefícios trabalhistas, corta incentivos à educação e cultura, favorece o salário do judiciário e mantém a mídia elitizada. Caos real com projetos como a Escola Sem Partido – que impede professores da rede pública em falar de política em sala de aula –; caos legitimado quando o presidente interino pede para não ser anunciado durante a abertura dos Jogos Olímpicos. Há semelhança entre o país visto por Zizo e o país vivido por seus herdeiros. Há repetição na história.

Muito provavelmente os Balbonis – família guerreira desde a origem do pai – sobreviverão. Eles têm apenas trocado de inimigos, como muitas iniciativas que caminham sozinhas – Organizações Não Governamentais (ONG) e o próprio Estado. Parece que o país que não limpou a Baia de Guanabara para os atletas velejadores está, na verdade, pedindo socorro. Mas como escreveu o grande pensador Gustav Jung, aquilo que você não aprende, repete-se.

(Colaboração da família Balboni e de Márcia Hirota, diretora-executiva da ONG SOS Mata Atlântica)

CONECTANDO é um projeto do Brasil Observer cujo objetivo é promover experiências de comunicação ‘glocal’. Em parceria com universidades, movimentos sociais e jornalistas independentes, nosso objetivo é levar conteúdos locais para uma audiência global. Para participar, escreva para o e-mail .