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Potencial narrativo infinito

Brasil Observer - Oct 10 2016
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Feira Dente (Fotos: Francisco Costa/I Hate Flash)

(Read in English)

 

O movimento de publicações independentes no Brasil efervesce

 

Por Helen Brüseke

Não que seja inédita a maneira independente de publicar trabalhos escritos. João Cabral de Melo Neto, quando servia na Espanha, já possuía uma Minerva em casa e imprimia de modo deliberadamente esquemático ensaios sobre Miró, escritos de Mário de Andrade, e disso sustinha a maneira usual de se colocar à disposição dos leitores sem mediações que tirassem dele margens de lucro.

O movimento de publicações independentes no Brasil efervesce há pelo quatro anos de modo crescente e se coloca em diversos formatos, caracterizando assim um movimento amplo e heterogêneo. Essa afirmação da maneira como se produz arte gráfica e visual impressa resiste há muito tempo através das fanzines, xerocadas e trocadas entre grupos em universidades para difundir ideias, revoltas, motes e afetos. No entanto, a difusão veloz de informações e emparelhamento de tendências estéticas e discursivas deslocou o foco dos fanzines para produções mais expressivas, mesclando autenticidade e experimentalismo em novos formatos, suportes e gêneros textuais.

Em 2012 houve a organização da Feira Plana, em São Paulo, que reuniu expositores de diversos lugares divulgando historietas em HQ, zines, cartões, pôsteres, manuais, livros, cadernetas etc. Percebeu-se que existia uma demanda efetiva para consumir ideias manuais e disso surgiram outras tantas feiras cujo foco se dá em publicações independentes, como acontece na Feira Dente, realizada em Brasília desde 2015, organizada pela lovelove6, Augusto Botelho, Daniel Lopes, Lucas Gehre, Lívia Viganó e Tais Koshino.

Em conversa com lovelove6, conhecida pelos seus trabalhos ‘Garota Siririca’, ‘Batata Frita Murcha’ e ‘Ética do Tesão na Pós-Modernidade’ I e II, a autora e ilustradora conta que o movimento de feiras ajuda pessoas que já fazem parte desse círculo a se tornarem também autores. Ela realizou junto a amigos a Feira Dente, declara ter sido uma experiência muito satisfatória, porém precisa ser ajustada às perspectivas que os próprios organizadores têm em relação a público, local, divulgação. Conta também que o público da edição feita neste ano se concentrou mesmo no segundo dia. A Feira Dente premia autores, ilustradores e artistas em dinheiro com a entrega do Dente de Ouro.

Rachel Denti, ilustradora e designer residente em Brasília, também participou pela primeira vez como expositora da Feira Dente na edição deste ano. Ela relata que esse movimento ajuda pessoas a tomarem coragem de divulgar seus trabalhos, ao passo em que o consumo de cultura na sua cidade carece de muitos incentivos, porque esse é um movimento de certo grupo para ele mesmo. Rachel também lembra a questão das gráficas, por onde seus trabalhos inevitavelmente passam. Lembra-se de sua experiência na escola de design onde estudou em Den Haag, na Holanda, e de a escola dispor de duas máquinas RISO, de impressão de alta demanda, que no Brasil se concentram em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Belo Horizonte. Mas reforça que esse é um movimento que toma proporções agora e que pode motivar novas diretrizes em áreas para a qual se volta a cena independente de publicações, sobretudo a de impressão.

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Os temas circulantes em zines caracterizam o que há de mais singular nesse movimento. A lovelove6 trabalha pautas em torno da sexualidade, libertação e empoderamento feminino, agenda essa que tem se tornado muito mais acessível pelos debates circulantes na internet. Já Rachel diz ter seu trabalho pautado em confronto consigo mesma, trazendo aspectos subjetivos da sua vida e sua relação de auto-percepção com o mundo.

O potencial narrativo é infinito e pode ser colocado da forma como os autores acharem melhor frente às suas próprias maneiras de compor ideias e propor trocas de experiências. Lívia Aguiar alimenta carinhosamente um diário de viagem online, ‘Eu sou à Toa’, e participa de feiras gráficas quando pode. A encontrei na Faísca, em agosto, feira produzida pelo BDMG cultural, na qual estava expondo uma série em A4 impressa em RISO sobre suas viagens pelo oriente quase inexplorado.

Quando Lívia falou um pouco mais sobre a ideia por trás dessa série de viagens (Camboja, Laos e Vietnã), disse que produziu com amigas e foi feito meio em cima da hora porque tiveram a ideia de participar de uma feirinha de rua mesmo. O trabalho dela retoma experiências de crescimento exploradas em suas diversas viagens pelo mundo. Os zines, livretinhos e mapas revelam sobreposições, escaneamento de materiais orgânicos, folhas e flores, além de cores e pedaços soltos de pensamento, impressões, anotações.

Ao falar de amigas que estiveram junto à ela nesse processo, remete à uma característica muito comum na organização de feiras e de zines. São idealizadas normalmente em conjunto, imbuídos de intuição e força de vontade, financiadas pelos próprios bolsos sem mediações governamentais ou empresariais, não contam com ISBN ou formalidades editoriais. Porém nem tudo é intuição e fluidez, porque os organizadores dos eventos Faísca, Dente e Plana se predispõem à entornos burocráticos, pois organizam eventos em espaços públicos, precisam pensar no ambiente que possam chamar mais atenção de consumidores que não estão inseridos nesse meio, o tal do público espontâneo, como colocou lovelove6.

Esse cenário é motivador e refrescante, já que novas pautas de discussão são colocadas como conteúdo, tendências de tratamento de imagem, de apresentação visual, e nos colocam mais diretamente com quem efetivamente produz e vende. Além de nos tornarmos mais abertos para essa nova formação de processos editoriais, alimentarmos e difundirmos a ideia de que as narrativas não precisam vir acompanhadas de superprodução, de qualidade impecável. Ainda que existam muitos trabalhos com arte finalização/acabamento, visão de produto de alta qualidade, o zine xerocado têm seu lugar de destaque.

Interessante a ser notado é que como vivemos em meio ao rápido consumo de informações, o cenário independente propicia que essa seja a maneira de entendimento das produções, uma vez que os zines são consumidos quase que instantaneamente pelo apelo visual que carregam. Esse cenário tem se ampliado para aqueles que possuem editorinhas, revistas sazonais, quadrinhos que costumavam ser divulgados em revistas de grandes editoras, mas que estas, por sua vez, acabaram fechando por conta de mudanças nesse mercado de informação também nos últimos cinco, seis anos. Reaver o modo de distribuição e venda é importante para quem participa de feiras, mas o foco está na produção de conteúdo e na apresentação de algo que não seria aceito pelo grande mercado editorial já conhecido.

CONECTANDO é um projeto do Brasil Observer cujo objetivo é promover experiências de comunicação ‘glocal’. Em parceria com universidades, movimentos sociais e jornalistas independentes, nosso objetivo é levar conteúdos locais para uma audiência global. Para participar, escreva para o e-mail .