‘Ficaremos em todos os espaços que nos foram negados’: a vitória eleitoral de uma mulher transgênero

Brasil Observer - nov 11 2016
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Indianara Siqueira durante protesto no Rio (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

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Indianara Siqueira recebeu 6.166 votos e foi eleita vereadora suplente no Rio de Janeiro

 

Por Fernanda Canofre

| Publicado originalmente em Global Voices – www.globalvoices.org

Há alguns anos o Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas transgêneros. De acordo com um estudo do grupo Transgender Europe, quatro vezes mais transgêneros são mortos no Brasil do que no segundo país da lista (México) e quase oito vezes mais do que no terceiro (Estados Unidos). Um estudo independente, organizado anualmente pelo Grupo Gay da Bahia, contabilizou ao menos 318 assassinatos de pessoas da comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) no Brasil em 2015, dos quais 37% – ou 117 pessoas – eram transgêneros.

A expectativa de vida de uma pessoa transgênero hoje no Brasil é de 30 anos. Comparativamente, a expectativa de vida dos brasileiros em geral atualmente é de 75 anos. O Brasil não possui nenhuma lei que proteja pessoas LGBT da discriminação. Nem orientação sexual nem identidade de gênero estão incluídas na definição de crime de ódio, tornando difícil a coleta de dados a respeito dessa questão. A vida é particularmente difícil para pessoas transgênero que trabalham como profissionais do sexo.

Diante desta problemática realidade, uma mulher transgênero de 45 anos ofereceu ao mundo uma amostra de como é a vida das pessoas trans no Brasil. Indianara Siqueira se candidatou a vereadora na cidade do Rio de Janeiro nas eleições municipais do dia 2 de outubro pelo Psol (Partido Socialismo e Liberdade). Ela recebeu 6.166 votos e foi eleita vereadora suplente. Para celebrar, além de convidar seus eleitores para a cerimônia de inauguração do mandato em janeiro, Indianara decidiu compartilhar sua história de vida no Facebook. Até agora, seu post recebeu 3.100 curtidas e 700 compartilhamentos.

Indianara nasceu em Paranaguá, uma cidade de médio porte no Paraná, durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Ela começou a tomar hormônios aos 12 anos. Aos 16, ela saiu da casa da avó. Antes de completar 20 anos, ela já havia sido estuprada – crime cometido por policiais na pequena pensão onde morava em São Paulo.

Indianara detalhou as condições brutais que ela e outras como ela viviam: “Fui pra Santos, afinal, como diz a canção: La miseré est plus légere au soleil (A miséria é mais leve no sol). Lá, dormindo na rua, conheci as travestis putas que me acolheram e me deram um poste onde trabalhar na esquina. De masseira e pizzaiola, me tornei puta”.

“Quase todos os dias éramos levadas pelo Francês (Polícia Civil) ou pelo Abreu (PM), entre outros PMs, pra delegacia. Apanhávamos por existir. Éramos jogadas no camburão e em viaturas como lixo que não pode nem ser reciclado. Éramos colocadas no muro do coliseu de Santos e tínhamos amoníaco espirrado na cara. Aquilo queimava olho, mucosa da boca. Só que quando eles iam puxar o amoníaco, puxavam também o revólver e se você corresse eles atiravam. Você suportava o amoníaco te queimar enquanto eles riam. Às vezes faziam você achar que iam fuzilar todas. Você aprende o dia de plantão dos teus algozes, mas não pra fugir deles e sim para se preparar psicologicamente pra ser torturada por eles. Você tinha que sobreviver. Mas você saia pronta pra morrer.”

Indianara se identifica como mulher transgênero e travesti. A palavra travesti, embora depreciativa em sua origem, foi regenerada pela comunidade transgênero no Brasil, e muitas mulheres trans hoje se identificam como tal. Ela viveu em Santos durante a década de 1990, quando a epidemia de AIDS se espalhava pelo Brasil. Ela escreveu que, na época, “a expectativa de vida para transvestigeneres (mistura das palavras travesti e transgênero) era 25 anos”.

“A AIDS chegou. Santos era conhecida como a capital da AIDS. Disseram que eu morreria de AIDS. Minha irmã cishétero casada com um PM morreu de AIDS. Várias amigas morreram de AIDS. Vários amigos morreram de AIDS. Nos chamavam de aidéticos. Nos expulsavam dos bares, restaurantes e não nos deixavam comer com medo que contaminássemos os talheres. Nos matavam socialmente aos poucos. Eles tinham prazer nisso. E não tínhamos a quem recorrer. Às vezes nos revoltávamos. A líder da revolta era assassinada. Ninguém chorava por nós. Ao contrário. Para muitas famílias é um alívio quando nos matam ou morremos.”

Através de suas lutas, Indianara se tornou ativista. Em 1996, ela fazia parte do grupo LGBT que lutava pelo direito das pessoas transgêneros usarem seus nomes sociais – o que se tornou lei este ano –, assim como pelo direito de um membro de um casal do mesmo sexo adotar o sobrenome do parceiro.

Ela também lutou para que mulheres trans fossem colocadas em alas femininas de hospitais, ou que ao menos fossem separadas dos homens nas alas masculinas. Quando combateu o abuso policial contra pessoas LGBT trabalhando na rua, ela se tornou um alvo.

“Então um dia fui algemada em um poste em Santos enquanto o policial fazia roleta russa na minha cabeça. Eu aterrorizada tremia tanto e chorava. Pensei nos meus irmãos pequenos que dependiam de eu sobreviver nessa porra de vida, pensei nas travestis doentes que dependiam que eu sobrevivesse. […] Sim, o barulho do tambor do revólver girando me fazia lembrar quem dependia de mim pra viver um pouco mais, mesmo eu não sabendo se teria essa chance. Mas o barulho aterrorizante do revólver me fazia lembrar que eu estava viva ainda. Ou morta, mas ainda sem saber.”

Sob ameaça, Indianara dividiu seu tempo entre Rio e São Paulo por um tempo, trabalhando com grupos de apoio para pessoas transgênero e organizando marchas LGBT. Mas, na medida em que ganhava destaque na comunidade, o abuso policial crescia.

“Em São Paulo, a polícia colocava cocaína no carro das travestis e nas bolsas exigindo cinco mil reais pra não levá-las presas como traficantes. Muitas foram. Tinham a vida destruída na prisão. Livres, viravam ladras revoltadas que agrediam inclusive a nós, as amigas, como se nos culpassem por não termos passado pelo mesmo. Muitas foram presas injustamente. Algumas morreram nas prisões. Nossa tortura tem que ser contada nas audiências públicas sobre tortura sim”.

Os abusos motivaram muitas brasileiras transgêneros a se organizarem melhor. Uma conferência nacional transgênero foi criada e se tornou um evento nacional importante. Indianara teve que deixar o Brasil, mas continuou a denunciar a polícia. Como ela explicou: “as vidas de transvestigeneres futuras dependiam de nós”. Um de seus projetos recentes inclui aulas preparatórias para exames em universidades desenhadas especificamente para estudantes trans.

Em 1992, uma amiga de Indianara, Kátia Tapety, foi eleita vereadora na pequena cidade de Colônia do Piauí – tornando-se a primeira pessoa transgênero a ser eleita para um cargo político. Nas eleições seguintes, Kátia se tornou a vereadora mais bem votada naquela cidade. Quatro anos mais tarde, ela se tornou vice-prefeita.

Vinte e quarto anos depois, a representação de pessoas trans continua baixa, mas as eleições deste ano tiveram um recorde de candidatos transgêneros. Ao menos 80 se identificaram como tal; seis foram eleitos. Para Indianara, foi uma vitória.

“Passamos um recado: estamos e ficaremos em todos os espaços que nos foram negados. Essa minha suplência é uma vitória de todos os corpos de transvestigeneres que tombaram por mim. Que sobreviveram por mim. Que tombaram ao meu lado. Pelos corpos que poderão dizer: sim, podemos porque elas e eles puderam. Sou resistência. Sou resiliência”.