Entre tantos projetos polêmicos engendrados pelo Congresso na atual legislatura está o que modifica as regras de exploração do pré-sal. Acusadas de “entreguistas”, mudanças estão na pauta do Senado
Por Wagner de Alcântara Aragão
Nos últimos seis meses, semana após semana os brasileiros vêm sendo surpreendidos pela atual legislatura do Congresso com iniciativas que representam passo atrás em diversas áreas da vida nacional. Na virada de junho para julho, o bombardeio veio tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado, confirmando o que o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar havia previsto em outubro último: a configuração do Legislativo brasileiro hoje é a mais conservadora desde a redemocratização do país, em 1985.
Na Câmara dos Deputados, em nova manobra do presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), os parlamentares aprovaram proposta de emenda constitucional que reduz a maioridade penal no Brasil de 18 para 16 anos. No plenário ao lado, no do Senado, quase que concomitantemente os senadores discutiam outro projeto que tem gerado controvérsia: o que retira da Petrobras a presença obrigatória na exploração das reservas de petróleo da camada do pré-sal.
A redução da maioridade ainda terá de ser apreciada pelo Senado, e não há previsão para que isso ocorra. Além disso, parlamentares anunciaram que vão recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo a inconstitucionalidade da proposta e do processo de votação (leia mais na página 19). Já a medida que diz respeito ao pré-sal estava prevista para ser apreciada pelos senadores entre os dias 30 de junho e 2 de julho, mas a votação foi adiada, sem definição de nova data. É possível que esteja em discussão justamente neste momento em que esta edição do Brasil Observer está em circulação.
A MUDANÇA
A medida em questão é o Projeto de Lei do Senado (PLS) 131/2015, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), ex-prefeito da capital paulista, ex-governador de São Paulo e que por duas vezes concorreu à Presidência da República (2002 e 2010). Tal qual a proposta que reduz a maioridade penal, o projeto tem rendido debates acalorados, embora não tenha alcançado grande repercussão na opinião pública.
O projeto de Serra altera a lei federal que trata das regras de exploração e produção do petróleo das reservas do pré-sal, descobertas em 2006. A lei em vigor foi proposta pelo governo Lula e aprovada pelo Congresso Nacional cinco anos atrás. O texto cria, especificamente para o pré-sal, o chamado regime de partilha, em contraposição ao regime de concessão, que continua a valer para a exploração de petróleo em áreas convencionais (camadas pós-sal).
Entre outras regras, a legislação atual dispensa a União de licitar campos de exploração de petróleo, permitindo que ela contrate automaticamente a Petrobras. Ou, nos casos em que a União considerar conveniente licitar áreas para exploração, a lei estabelece que a Petrobras deve ter uma participação mínima de 30% no empreendimento. O projeto do senador do PSDB revoga essa participação obrigatória da Petrobras nos consórcios de exploração, abrindo a possibilidade para que campos do pré-sal sejam explorados unicamente por corporações privadas, inclusive estrangeiras.
WIKILEAKS
Não bastasse a própria natureza do projeto, a iniciativa de José Serra soou estranha também porque o senador está envolvido num episódio revelado pelo Wikileaks – organização que tornou pública uma série de trocas de mensagens internacionais relacionadas a interesses econômicos e políticos – que denota certo acordo entre o político e petroleiras norte-americanas, para abertura do mercado a essas empresas. O episódio veio à tona em dezembro de 2010, pouco mais de um mês depois do segundo turno da eleição presidencial, em que Serra disputou a presidência e foi derrotado por Dilma Rousseff.
Segundo matéria do jornal Folha de S. Paulo, o então candidato José Serra trocou mensagem com Patricia Pradal, diretora de Desenvolvimento de Negócios e Relações com o Governo da petroleira norte-americana Chevron. Disse ele, de acordo com a matéria: “Deixa esses caras [do PT] fazerem o que eles quiserem. As rodadas de licitações não vão acontecer, e aí nós vamos mostrar a todos que o modelo antigo funcionava… E nós mudaremos de volta”. As petroleiras estadunidenses eram contra a participação mínima obrigatória da Petrobras na exploração e produção do pré-sal.
Em sessão temática sobre o projeto de lei promovida pelo Senado em 30 de junho, José Serra rechaçou acusações de que estaria a defender o interesse das grandes corporações internacionais. Serra definiu seu projeto como uma “medida patriótica”, por permitir que a Petrobras fique desobrigada de arcar com 30% de investimentos nas atividades de exploração e produção do pré-sal em momento “difícil” atravessado pela estatal, conforme suas palavras. Para o senador, o projeto não “desprestigia” a Petrobras, apenas lhe retira “ônus”.
CRÍTICAS
Não é o que ocorreria na prática se o projeto fosse aprovado, na visão de vários colegas de Serra no Senado, de especialistas na área de petróleo e de movimentos que representam os trabalhadores da atividade petroleira. “É rigorosamente um absurdo. É entregar nossa riqueza às sete irmãs [multinacionais do setor]. Não consigo entender como querem tirar do controle nacional um bem tão importante, tão nobre, como é o petróleo. É um crime contra a soberania nacional esse projeto”, afirmou o senador Roberto Requião (PMDB-PR), que tem liderado, no Congresso, as críticas ao projeto de José Serra.
O professor Ildo Sauer, diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da Universidade de São Paulo (USP), é outro contrário às mudanças, também por considerar que o Estado brasileiro abriria mão de ter sob seu controle uma riqueza estratégica para o desenvolvimento econômico e social do país. Palestrante da sessão temática realizada no Senado, Sauer advertiu que o potencial de reservas de petróleo do pré-sal não está dimensionado por completo.
Ou seja, a quantidade de petróleo que seria explorada por companhias estrangeiras caso as novas regras sejam aprovadas pode ser bem maior. “O modelo atual é o mais eficiente, e permite tirar partido de duas grandes vantagens comparativas do Brasil: a capacitação tecnológica da Petrobras, não obstante as mazelas que hoje afligem a empresa, e a outra é o grande volume de petróleo no pré-sal, ainda não devidamente estabelecido”, declarou o professor.
Quem também chama a atenção para a existência de reservas ainda imensuráveis é o consultor legislativo Paulo César Ribeiro Lima, especialista em gás e petróleo e autor do livro “Pré-sal: o novo marco legal e a capitalização da Petrobras”. Lima fez coro a Ildo Sauer na sessão temática do Senado, na defesa do modelo atual de exploração do petróleo da camada pré-sal. “Para evitar que interesses privados se sobreponham aos interesses da maioria da população brasileira, é essencial que a Petrobras lidere a produção do pré-sal”, frisou o consultor. A descoberta de reservas do pré-sal é considerada, em todo o mundo, a maior dos últimos dez anos, acrescentou ele.
Paulo Lima assinalou ainda que desde o início da extração de petróleo do pré-sal, em 2009, a Petrobras vem batendo recordes de produção. Isso demonstra que a companhia, apesar turbulência por conta dos desvios bilionários apurados pela Operação Lava Jato, mantém sua capacidade técnica e econômica para seguir como protagonista na atividade. “A Petrobras é a empresa com maior experiência no mundo em águas profundas. A eficiência dela é comprovada pelo altíssimo índice de sucesso exploratório e pela alta produtividade dos poços, muito superior às médias mundiais. O pré-sal é um verdadeiro tesouro e deve ser explorado com a máxima participação da Petrobras, de forma a garantir maior retorno para o país”, defendeu.
FORNECEDORES
Acreditando que desobrigar a Petrobras de entrar com 30% nos empreendimentos de exploração do pré-sal signifique atrair mais investidores, representantes da indústria fornecedora da cadeia produtiva petroleira defendem as mudanças contidas no projeto de José Serra. Na sessão temática do Senado, o diretor-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos, Alberto Machado, disse que tal flexibilização pode propiciar à indústria nacional de bens de capital mecânicos mais intercâmbio técnico. Isso porque, segundo a linha de raciocínio do líder empresarial, haveria um leque maior de clientes com os quais o setor estaria em parceria.
O presidente do Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis, Jorge Marques de Toledo Camargo, citou também que o possível aumento de clientes diminui o risco de investimentos por parte da cadeia produtiva. Já o diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura, Adriano Pires, considerou que as dificuldades enfrentadas pela Petrobras devem frear investimentos da companhia.
Este último argumento foi rebatido por Paulo Lima, para quem empresas como a Petrobras possuem “peculiaridades” que nem sempre são captadas por avaliações de agências de risco ou de analistas financeiros. “A Petrobras apresenta uma excelente situação financeira, econômica e operacional, com um futuro altamente promissor. As visões estreitas e de curto prazo de agências de risco e de alguns analistas que sequer conhecem a realidade da empresa podem levar a sociedade brasileira a acreditar que a Petrobras está passando por uma situação que, de fato, não é real”, ponderou.
NOVO PLANO
A Petrobras vai investir menos nos próximos anos. O Plano de Negócios e Gestão 2015-2019 prevê US$ 130,3 bilhões em investimentos – redução de 37% na comparação com o plano anterior, de 2014 a 2018. O novo Plano de Negócio foi aprovado pelo Conselho de Administração da estatal no dia 26 de junho. A companhia comunicou que o plano tem como objetivos a “geração de valor para os acionistas” e a “desalavancagem da companhia”.
Para melhorar a situação das contas, além de reduzir investimentos, a empresa pretende vender bens e outros ativos. O montante de venda previsto para este e o próximo ano soma US$ 15,1 bilhões.
Segundo a Polícia Federal, o rombo no caixa da estatal petrolífera causado pelo esquema de cartel, fraudes em licitações, desvios e corrupção alvos da Operação Lava Jato já chega a R$ 19 bilhões.
Nova licitação e conteúdo nacional
O governo federal não tem sinalizado a possibilidade de abrir em breve licitação para exploração de novos campos do pré-sal. Desde que o regime de partilha foi instituído, em 2010, houve apenas uma concorrência, em 2012, para o Campo de Libra, na Bacia de Campos. O consórcio vencedor tem participação de 40% da Petrobras. Os outros 60% estão distribuídos entre a holandesa Shell (20%), a francesa Total (20%) e as chinesas CNPC (10%) e CNOOC (10%).
Mas está confirmada, por outro lado, uma nova rodada de licitações para a exploração de petróleo em campos convencionais (camada pós-sal). A rodada – a 13ª desde 1997, quando a lei 9.478/1997 instituiu o regime de concessão na exploração de petróleo no Brasil – está marcada para os dias 7 e 8 de outubro. De acordo com a Agência Nacional do Petróleo (ANP), responsável pelo certame, serão leiloados 266 blocos exploratórios, com área total de 125.045,9 km².
Bandeira de campanha do presidente Lula desde a sua primeira eleição, em 2002, e também da atual presidente Dilma Rousseff, a política de conteúdo nacional do governo brasileiro para a indústria de petróleo e gás não deverá ser mexida. Ao menos é o que vem garantindo o Planalto, embora recentes declarações do ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, tenham passado a impressão de que o governo cogitaria flexibilizar tal exigência, para atrair investidores.
A prioridade ao conteúdo local tem sido prática tanto da Petrobras como tem constado nas cláusulas dos contratos de concessão para a exploração de campos de petróleo por empresas privadas. O índice de conteúdo local nas compras e serviços contratados varia a cada operação, mas tem chegado a até 80% do total, em alguns casos.
Fixando essa reserva de mercado, o governo busca ampliar a participação da indústria nacional de bens de capital no fornecimento à cadeia produtiva petroleira. A política de conteúdo local foi responsável, sobretudo, pela recuperação da indústria naval brasileira, que praticamente se extinguiu nos anos 1990. “A reimplantação da indústria naval no Brasil fez com que incorporássemos tecnologia, melhorássemos a formação dos nossos trabalhadores e gerássemos emprego e renda. O que nós queremos é produzir no Brasil o que pode ser produzido no Brasil”, declarou Dilma durante entrega de um navio petroleiro da Transpetro (subsidiária da Petrobras), no complexo de Suape (PE), em maio.
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