Os benefícios trazidos pelo uso da bicicleta como meio de transporte são mais do que conhecidos. Tanto em São Paulo quanto em Londres, a transformação está em andamento
Por Guilherme Reis
Londres, 27 de março, 6pm horário local. Nos arredores do Southbank Centre, ciclistas se reúnem para mais uma pedalada organizada toda última sexta-feira do mês pelo grupo Massa Crítica (Critical Mass, em inglês). Por volta das 7pm, com uma aglomeração que ultrapassava seguramente a marca de 500 pessoas, as buzinas avisam que a marcha sobre duas rodas está para começar. Nas horas seguintes, ao som do reggae e outros gêneros que saiam de caixas acopladas nas bikes de alguns participantes, a reportagem do Brasil Observer acompanha a procissão que passa por Holborn, Camden Town e King’s Cross até chegar ao ponto final, em Covent Garden. O motivo do encontro: promover o uso da bicicleta como meio alternativo de transporte, menos poluente, além de conscientizar a população para o compartilhamento seguro dos espaços públicos.
São Paulo, 27 de março, 6pm horário local. Na Praça do Ciclista, na Avenida Paulista, ciclistas, cicloativistas e simpatizantes aproveitam a bicicletada que acontece toda última sexta-feira do mês para protestar. O motivo: uma liminar do Ministério Público que, uma semana antes, havia suspendido a construção de ciclovias em toda a cidade por falta de planejamento. Pouco depois das 8pm, o ato que reuniu cerca de sete mil pessoas começa a se deslocar no sentido da estação Paraíso do Metrô. No meio do caminho chega a notícia de que o Tribunal de Justiça de São Paulo havia acabado de derrubar a liminar que impedia a implementação das ciclovias. Os manifestantes comemoram, mas sabem que a luta a favor da bicicleta como meio alternativo de transporte, assim como a conscientização dos cidadãos para o compartilhamento pacífico dos espaços públicos, continua.
Os benefícios sociais, econômicos, ambientais e de saúde trazidos pelo uso da bicicleta como meio de transporte são mais do que conhecidos. Exatamente por isso as maiores cidades do mundo têm se esforçado para incentivar uso da “magrela” nos deslocamentos diários. Um esforço que envolve a construção de toda a infraestrutura cicloviária e a conscientização de motoristas de automóveis, pedestres e dos próprios ciclistas para que haja segurança na atividade de pedalar em ambientes urbanos. São Paulo e Londres, como não poderia deixar de ser, também se adéquam aos novos tempos, ainda que estejam em estágios diferentes do processo.
SÃO PAULO: NOVIDADE POLITIZADA
A demanda por uma infraestrutura cicloviária compatível com a grandeza da cidade de São Paulo existe há pelo menos três décadas, disse ao Brasil Observer a paulistana Renata Falzoni, cicloativista e bikerrepórter com mais de 30 anos de experiência. Mas somente agora, na administração do prefeito Fernando Haddad (PT) – eleito em 2012 para quatro anos de mandato –, a pauta foi incorporada no Programa de Metas da prefeitura. O plano é entregar 400 km de ciclovias até o final de 2015, ao custo estimado de 80 milhões de reais. “Em bom português, demorou!”, comentou Renata Falzoni.
O último trecho entregue pela prefeitura até o fechamento desta edição foi na região do Bom Retiro, na zona central da cidade, no dia 2 de abril. Assim, a cidade passou a contar com um total de 264,8 km de vias destinadas aos ciclistas. Desse montante de ciclovias existentes na cidade, a atual gestão inaugurou 201,8 km desde junho de 2014. Portanto, antes, São Paulo contava apenas com 63 km.
Para o cicloativista Willian Cruz, autor do site Vá de Bike, “já é possível percorrer longas distâncias na cidade usando ciclovias na maior parte do trajeto, por vezes no caminho todo”. Ao Brasil Observer, ele reconheceu, porém, que “em alguns pontos existem irregularidades no asfalto ou na sinalização, o que já existia antes, com a diferença de que agora a utilização é exclusiva do ciclista”.
A sensação de que ainda é possível melhorar alguns pontos do projeto é recorrente. Mas, de maneira geral, os ciclistas estão satisfeitos. “Estamos relevando muitos problemas. O que está sendo feito é basicamente o que se consegue fazer nesse momento, nessa cidade caótica que ainda depende do carro, tanto por necessidade quanto por vício”, afirmou Renata Falzoni. Ela acredita que a estrutura cicloviária está sendo feita em rede e que vai conectar os ciclistas. “Somente assim é que mais e mais pessoas sairão de bicicleta às ruas, ocuparão a rede cicloviária e, consequentemente, o espaço público. E com isso darão sentido a esse esforço. O importante é conectar, ocupar e depois melhorar”, completou.
Pesquisa divulgada pelo Ibope em setembro último mostrou que São Paulo ganhou 86,1 mil ciclistas frequentes de 2013 para 2014 – período que coincide, em partes, com a ampliação da malha cicloviária. Segundo o levantamento, 261 mil paulistanos usavam bicicletas todos os dias como meio de transporte no ano passado. Já a última Pesquisa Origem/Destino do Metrô, de 2012, contabilizou 333 mil viagens diárias de bicicleta, mas não a quantidade de pessoas – o número representa aproximadamente 1% do total de viagens feitas somando todos os meios de transporte disponíveis.
Há, porém, quem reclame das ciclovias. “A resistência parte de uma mínima parcela da população que acredita que o espaço público deve ser privatizado para estacionamento de carros particulares, ou para único uso dos motoristas em automóveis, modelo que expulsa a população das ruas, que segrega e que é responsável direto pela baixa qualidade de vida de nossa cidade”, opinou Renata Falzoni.
Para Willian Cruz, o grande problema tem sido a “polarização partidária” em cima do projeto da prefeitura. “As vias para ciclistas são chamadas de ‘ciclovias do Haddad’ por boa parte da imprensa, como se fossem feitas para atingir objetivos eleitorais ou partidários, não para melhorar a mobilidade e proteger a vida das pessoas que usam ou pretendem usar a bicicleta”, comentou o clicoativista.
A segurança dos ciclistas, aliás, deve ser o melhor termômetro para medir o quanto a cidade está sendo eficiente, tanto na questão de infraestrutura e sinalização quanto no quesito conscientização. Os dados mais recentes referentes aos acidentes e mortes no trânsito de São Paulo são de 2013. Naquele ano, foram registrados 712 acidentes envolvendo ciclistas, com 35 mortes – número elevado para os padrões europeus. Em 2005, foram contabilizadas 93 mortes.
“São Paulo se parece com Londres. Muitos ônibus, taxis e caminhões de entrega nas ruas. Tem que ter sangue frio para enfrentar. Londres tem a vantagem de ter muito menos motos e muito mais ciclistas nas ruas. E se o motorista atropelar, vai para cadeia. O motorista londrino pode não gostar dos ciclistas, mas respeita. Em São Paulo alguns motoristas não respeitam e ponto”, afirmou Renata Falzoni.
Ela lembrou que uma medida importante nessa adaptação do espaço público é o pedágio urbano – aqui em Londres, o Congestion Charge. “Londres encarou de frente a proposta de tirar os carros da rua. Em São Paulo, temos o rodízio que foi criado há duas décadas e não evoluiu. Qualquer um que seja carro-maníaco tem dois carros”.
LONDRES: AVANÇADA, MAS EXIGENTE
A bicicleta como meio de transporte passou a ser levada a sério em Londres em 2008, quando o então prefeito trabalhista Ken Livingstone estabeleceu a meta de aumentar em 400% as viagens de bike na cidade até 2025. Naquele mesmo ano, porém, ele perdeu as eleições para o conservador Boris Johnson, que prometeu continuar apoiando a expansão da malha cicloviária da capital britânica.
Em 2010, foram disponibilizadas seis mil bicicletas no esquema de aluguel-rápido (até 30 minutos) Barclays Cycle Hire em 400 estações em nove bairros centrais de Londres. O número logo foi ampliado para oito mil bicicletas em 570 estações, transformando a chamada ‘Boris Bike’ em um símbolo da cidade – que, aliás, está mudando de cor, do azul para o vermelho do banco Santander, novo patrocinador.
Nem tudo é tão fácil, porém. Das 12 ‘Cycle Superhighways’ propostas por Levingstone em 2008, apenas quatro já saíram do papel: CS3 (Barking até Tower Gateway), CS7 (Merton até a City), CS2 (Stratford até Aldgate) e CS8 (Wandsworth até Westminster). Todas juntas têm 33 km, segundo o site da TFL (Transport For London).
Mas há ainda uma série de outras rotas disponíveis que formam a ‘London Cycle Network’, sinalizadas com desenhos de bicicletas no asfalto e, em alguns casos, com números. Dessa forma, já em 2011 se registrava em Londres que 2,5% das viagens para o trabalho eram feitas de bicicleta – número alto para a realidade de São Paulo, mas considerado decepcionante pelas autoridades inglesas (na cidade de Cambridge, por exemplo, o número era de aproximadamente 30%).
Depois da Olimpíada de 2012 é que, enfim, a bicicleta passou a parecer capaz de revolucionar o transporte em Londres. Inspirados pelo bom desempenho dos ciclistas britânicos nos jogos, as autoridades decidiram transformar o gosto pela pedalada em legado olímpico e, em 2013, Boris Johnson apresentou proposta ousada: construir duas grandes ciclovias segregadas que fariam um xis na cidade, de norte a sul, de leste a oeste, somando quase 35 km.
Como em São Paulo, houve bastante oposição, principalmente dos taxistas, preocupados com o fato de os trajetos ficarem mais longos por conta dos desvios necessários para adaptar as vias. Mesmo assim, o projeto foi aprovado e as obras começaram no mês passado na região de Southwark. A rota norte-sul terá quase 5 km e vai de King’s Cross a Elephant and Castle, enquanto a rota leste-oeste terá por volta de 30 km, saindo de Barking e chegando até Acton.
Para Rosie Downes, da London Cycling Campaign, “o projeto sempre foi bem-vindo, mas demorou muito para ser colocado em prática”. Segundo ela, as ciclovias segregadas representam um grande passo a frente na criação de vias mais seguras para os ciclistas. “Temos algumas preocupações em detalhes que estão sendo resolvidos com a TFL, mas de maneira geral estamos satisfeitos em ver que o projeto dá muito mais espaço para ciclistas e pedestres”, completou Downes.
O planejamento da prefeitura de Londres prevê investimento de 913 milhões de libras nos dez anos de 2013 a 2023 para deixar a cidade mais convidativa ao uso das bicicletas. Isso envolve desde a construção de ciclovias segregadas até a adaptação de vias e rotatórias e a ampliação do esquema de aluguel-rápido de bikes.
Uma das propostas, aliás, é chamada de ‘Quiteways’, que são rotas para bicicletas em ruas menores e menos movimentadas, de modo que o ciclista possa fugir das high streets que são sempre mais perigosas. Rosie Downes, porém, faz um alerta. “A ideia é boa, pois precisamos de rotas acessíveis que levem a todos os lugares possíveis. Mas é essencial que essas ruas sejam realmente calmas e viáveis para ciclistas de todos os níveis. Muitas ruas ao redor das high streets acabam sendo usadas por motoristas apressados que tentam fugir do congestionamento, então é preciso que haja sinalizações bem claras nos cruzamentos e limite de velocidade”, ponderou.
Por ser mais plana e ter um sistema viário mais organizado, além de ciclovias bem sinalizadas, Londres certamente é uma cidade mais convidativa para o ciclista do que São Paulo. Os próprios números comprovam isso: em 2012, a média diária de viagens feitas de bicicleta na capital britânica foi de quase 600 mil, sendo que em todo o ano foram registradas 14 mortes decorrentes de acidentes de bike – mesmo número registrado em 2013, considerado alto por aqui.
As duas cidades, porém, compartilham o mesmo desejo, por parte considerável de seus cidadãos, de transformar a mobilidade urbana por meio do uso das bicicletas, repensando a utilização dos espaços públicos e promovendo uma maneira mais amistosa de se locomover.
PEDALADAS LUCRATIVAS: MERCADO DE SUPERBIKES AVANÇA NO BRASIL
O aumento do número de ciclovias nas grandes cidades brasileiras e a disseminação de um estilo de vida mais saudável estão aquecendo o mercado de bicicletas no país, principalmente no segmento “premium”, com modelos que custam de 3 mil a 70 mil reais.
“Nos últimos cinco anos, as vendas de bikes de mais de 3 mil reais aumentaram pelo menos 100%”, disse à BBC Brasil Marcelo Maciel, presidente da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike). Luis Felipe Praça, presidente da Trek no Brasil, tem estimativa semelhante. “Nossas vendas desse segmento devem ter crescido em média 20% ao ano nos últimos cinco anos”, afirmou à reportagem.
As montadoras de carros também estão de olho nesse mercado. Entre as marcas que fabricam bicicletas de luxo estão a Land Rover, que está planejando levar para o Brasil alguns de seus modelos, e a BMW, que já vende no mercado brasileiro três tipos de bike “premiun”, com preços de 7 a 19 mil reais. Além dessas, Chevrolet e Volkswagen também já lançaram suas superbikes no país.
Os impactos na produção das “magrelas” como um todo, porém, não devem ser sentidos imediatamente, conforme avaliação da Abraciclo, que reúne os fabricantes de bicicletas, motos, motonetas e outros veículos de duas rodas. Segundo a entidade, o número de unidades fabricadas e vendidas no país tem se mantido estável nos últimos anos, em torno de 4,5 milhões de bicicletas. Mas isso não é pouco: o Brasil é o terceiro maior fabricante de bicicletas do mundo, com uma fatia de 4% do mercado global. Em primeiro lugar está a China, com 67% da produção total (80 milhões de bicicletas por ano), seguida pela Índia, que tem 8% (10 milhões de bicicletas por ano).
Dados da mesma associação indicam que o Brasil é o quinto maior mercado consumidor de bicicletas no mundo, com 5,3 milhões de unidades – os primeiros são China, Estados Unidos, Japão e Índia.
Entre os modelos nacionais e importados que circulam pelo país, a Associação Brasileira da Indústria, Comércio, Importação e Exportação de Bicicletas, Peças e Acessórios (Abradibi) estima que 50% são usadas como meio de locomoção para o trabalho, 32% são de crianças, 17% são para o lazer e 1% são usadas em competições.