Reforma política, sim, mas qual?

brasilobserver - mai 20 2015
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Deve-se notar quão diferentes são os projetos em pauta: o de Eduardo Cunha, assentado no “financiamento privado” e no “voto facultativo”, e o da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, cuja lógica é o financiamento público e o empoderamento dos partidos e do cidadão comum

 

Por Francisco Fonseca*

O atual sistema político do Brasil foi estruturado no último governo militar (1979-1985), comandado pelo general João Baptista Figueiredo e articulado pelo general Golbery do Couto e Silva. O objetivo era contemplar demandas democráticas (caso do pluripartidarismo), mas fundamentalmente manter o status quo, o que implicou, por um lado, impedir punições às barbáries impetradas pelos militares e, por outro, vetar grandes reformas estruturais: políticas, sociais e econômicas. Deu-se a redemocratização, e a espinha dorsal do sistema político nacional não foi alterada, pois:

a) o pluripartidarismo foi levado às últimas consequências, a ponto de termos hoje 28 partidos legais com participação no jogo político, dos quais grande parte é considerada “partido de balcão”;

b) o financiamento dos partidos políticos se consolidou de forma mista (fundo partidário público e financiamento privado legal), mas com uma terceira e decisiva forma de financiamento, ilegal: o chamado caixa dois. As prioridades governamentais passam pela composição dos governos (distribuição de nacos de poder a grupos com interesses muito distintos) e pela lógica da chamada “governabilidade”, por meio de “bases de apoio” amplíssimas, tornando o caixa dois uma verdadeira instituição informal. Independentemente de partidos e governos, o que se vê, desde a redemocratização, é uma sucessão de escândalos, cuja lista é longa e perpassa todos os governos, e cuja raiz é o financiamento de partidos/campanhas tanto por meio de doações privadas legais – cuja lógica é beneficiar-se após as eleições – como por meio do caixa dois;

c) a “governabilidade a qualquer custo”, anteriormente referida, aprofundou-se de tal forma que qualquer governo de coalizão paga um custo político alto – notadamente os partidos ideológicos, quando vencem eleições ao Executivo – para governar, a ponto de perder sua identidade, construída quando de oposição (caso notório do PT).

d) distorções as mais distintas foram ocorrendo: coligação nas eleições proporcionais, que implica que o eleitor vote num candidato e eleja outro, de outro partido; a lógica de que os partidos derrotados também governam, em razão da referida necessidade de maioria parlamentar a qualquer custo; a controversa desproporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados; entre outros;

e) os mecanismos institucionais/legais de fiscalização, embora tenham avançado, não foram capazes de desfazer a lógica privatizante da vida pública, a ponto de “engavetadores-gerais da República” serem possíveis, uma vez que, em boa medida, dependem do perfil de quem está no poder das instituições fiscalizatórias;

f) o papel despolitizante, simplificador ao extremo dos problemas nacionais e antidemocrático da grande mídia formou gerações e gerações de cidadãos manipulados e incapazes de minimamente refletir sobre os aspectos basilares do processo político.

Em razão desse conjunto de problemas, tem havido intensos debates e propostas de reforma política desde a redemocratização. Dessa forma, duas grandes propostas se consolidaram, desde o ano passado, como projetos claramente antagônicos – e que devem ganhar atenção agora que o Congresso avalia uma série de medidas que podem em breve mudar as regras do jogo político no Brasil.

Do lado conservador, existe a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 352/2013, de autoria do ex-deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) e encampada pelo atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Tal proposta institucionaliza o financiamento privado por meio de um sistema de “escolha” da forma de financiamento, isto é, se público, misto ou privado; institui o “voto facultativo”; e impede a reeleição a cargos executivos; entre outras medidas, mais ou menos conservadoras, mas de menor relevância, pois as duas primeiras são suficientes para derrogar toda a luta por reformas e institucionalizar o que há de pior na vida política do país.

A chamada “privatização da vida pública” tem no financiamento privado (legal e ilegal) verdadeiro pilar, uma vez que torna estratosférico o preço das campanhas; impede que os pequenos partidos ideológicos tenham a mínima chance de concorrer com os grandes partidos que “jogam o jogo”; transforma os poderes do Estado e boa parte de suas ações verdadeiros “balcões de negócios”; estimula a existência ao infinito de partidos e atrai políticos sem qualquer compromisso com a democracia e sem o mais tênue sentido de “esfera pública”; elitiza fortemente a política, dificultando estruturalmente reformas populares ao blindar as elites de qualquer possibilidade de “reformas radicais democráticas”; desestimula a participação política do cidadão comum, abrindo caminho para os lobbies e toda forma de tráfico de influência. Tudo isso amparado, coordenado e amplificado pelo aparato midiático, espécie de “intelectual orgânico” do capital e das classes médias gestoras deste.

Quanto ao voto facultativo, trata-se de verdadeira derrubada de qualquer vestígio popular de democracia, o que é um paradoxo. Afinal, num país em que historicamente se descrê, e de maneira vigorosa, das instituições estatais e do sistema político, o voto facultativo – cuja imagem é a ideia de que “direitos não se obrigam” – tenderia fortemente a excluir os pobres da vida política. A plutocracia fecharia o círculo: pela origem, via capital privado, e pela dinâmica, por meio do voto das classes médias e dos ricos.

De maneira oposta, diversas organizações vêm se articulando em torno da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, que reúne mais de uma centena de entidades, entre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), centrais sindicais e inúmeras outras, das mais distintas naturezas, mas com um único propósito: reformar o sistema político brasileiro numa perspectiva de fato democrática.

Os pilares da proposta, que necessita de 1,5 milhão de assinaturas para ser apresentado ao Congresso, baseiam-se na proibição do financiamento empresarial a partidos e candidatos; o voto em lista em dois turnos para cargos legislativos: no primeiro turno o eleitor vota em uma lista de candidatos apresentada pelo partido e, no segundo turno, em um candidato específico; fim das coligações proporcionais; paridade entre homens e mulheres nas listas partidárias; e fortalecimento dos mecanismos de democracia direta com a participação da sociedade em decisões nacionais importantes.

O projeto procura empoderar dois atores: primeiro, os partidos políticos, por meio do voto em lista preordenada, em que os partidos se tornam protagonistas, em vez de os candidatos como indivíduos.

Segundo, as mulheres são igualmente empoderadas ao se estatuir paridade entre homens e mulheres na lista ofertada aos eleitores. O projeto considera fundamental que as mulheres sejam protagonistas na vida político/institucional, uma vez que não apenas são maioria da população brasileira (51%, de acordo com o último Censo), como sua participação – nas três esferas do Estado – é historicamente diminuta. Apesar da lei dos 30% de vagas reservadas às mulheres candidatas aos parlamentos por partido, a participação feminina continua extremamente aquém de seu número e importância.

Quanto aos mecanismos de participação, procura-se equalizar a democracia representativa (institucional) e a democracia direta (ou de base) de forma que se complementem. Não há incompatibilidade entre ambas, visto que conselhos gestores de políticas públicas, conferências locais, regionais e nacional, formas diversas de participação, incluindo-se as digitais, entre outras, já fazem parte da dinâmica social brasileira, embora sem a formalização de uma lei, que seria o caso do decreto presidencial que os institucionalizaria.

Deve-se notar quão diferentes, isto é, opostos, são os projetos. Embora em ambos haja outras questões, tal como proibição da reeleição, os pilares de ambos os projetos ancoram-se na forma de financiamento, na obrigatoriedade ou não do voto e na formatação do sistema eleitoral. São dois projetos de Brasil. A vitória de um ou de outro impactará gerações. Não é pouco o que está em jogo.

 

*Francisco Fonseca é mestre em Ciência Política e doutor em História, professor de Ciência Política na FGV-SP. Este artigo foi publicado originalmente no jornal Le Monde Diplomatique Brasil.

BRASIL OBSERVER – EDIÇÃO 27