Do progresso ao retrocesso

brasilobserver - mai 15 2015
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Protesto durante audiência pública na comissão especial que analisa a redução da maioridade penal (Foto: Zeca Ribeiro/ Câmara dos Deputados)

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A redução da maioridade penal de 18 para 16 anos no Brasil seria um passo trágico em direção à barbárie

 

Por Atila Roque, Diretor Executivo da Anistia Internacional no Brasil

Desde a redemocratização, o Brasil vem avançando na aquisição e manutenção de direitos humanos. É verdadeiro dizer que, muitas vezes, o progresso anda a passos lentos, porém firmes. No entanto, a eleição, no ano passado, do Congresso Nacional mais conservador desde a ditadura militar nos coloca diante de sérios riscos. A redução da maioridade penal talvez seja o mais escandaloso dos exemplos.

É preciso desconstruir os estereótipos sobre quem são estes adolescentes de 16 a 18 anos e todos os argumentos que manipulam demagogicamente o medo legítimo existente na sociedade – um medo amplificado artificialmente que coloca nas costas dos jovens e adolescentes uma falsa responsabilidade pela violência. Afinal, estes jovens (16 a 18 anos) são responsáveis por menos de 1% dos crimes cometidos no Brasil. Jovens que, dia após dia, são relegados à margem da cidadania; cujos direitos humanos fundamentais, como saúde, educação, cultura, moradia, esporte e mobilidade, são reiteradamente negados; e que, ainda assim, acabam sendo injustamente acusados de alçar o crime a altos patamares no Brasil.

A resposta das autoridades à crise da segurança pública não pode ser a redução da maioridade penal. Estes jovens, geralmente negros, pobres e moradores de favelas, são as principais vítimas da violência.

Só em 2012 foram registrados 56 mil homicídios no Brasil. Em mais de 50% dos assassinatos (30 mil), as vítimas foram jovens de 15 a 29 anos; 77% deles, negros. Dados do Índice de Homicídios na Adolescência mostram também que mais de 42 mil adolescentes de 12 a 18 anos poderão ser vítimas de homicídios no país até 2019. E a curva de crescimento continua ascendente. Nos últimos dez anos, por exemplo, a violência letal entre os jovens brancos caiu 32,3% e entre os jovens negros, aumentou 32,4%. Ou seja, os homicídios de jovens negros são um dos principais pilares que sustentam o aumento da violência letal. O outro pilar é a indiferença com a qual a sociedade e o Estado geralmente tratam essas mortes, como se já tivessem passado a fazer parte da paisagem natural de nossas cidades.

Alguns pensam: “O mundo é mesmo um lugar violento”. Não. Violento mesmo, atualmente, é o Brasil. Somos responsáveis por mais de 10% dos homicídios do mundo. Como se essas mortes fossem destino. Não eram. Foram resultado das escolhas que fizemos ou deixamos de fazer. A criminalização da pobreza e o racismo operam reforçando-se mutuamente no discurso do ódio e do medo que colocam a classe média em uma posição contrária à defesa de direitos previamente conquistados. São eles os que mais temem a violência, apesar de não serem os que mais sofrem com ela.

CONTEXTO E CENÁRIOS

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 25 anos em 2015. A legislação brasileira se tornou uma referência internacional, entretanto ainda há hiatos na sua aplicação. O que já é realidade: o ECA prevê que a menor idade de responsabilidade criminal é 12 anos. Os jovens com idade entre 12 e 18 anos devem ser atendidos por um sistema de justiça juvenil, que é adequado a seus direitos e características de desenvolvimento social e psicológico, inclusive com a privação de liberdade como último recurso. O crime deve ser punido, mas é preciso considerar as diferenças de desenvolvimento físico e psicológico dos adolescentes em relação aos adultos.

Já o sistema prisional do Brasil é um dos mais violentos do mundo. Somos o quarto país em população carcerária, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. E as condições são péssimas: alojamento, alimentação, justiça. Ali as pessoas são desumanizadas.

O sistema de justiça e segurança pública no Brasil tem sido historicamente marcado por uma distribuição seletiva da justiça e da impunidade. Trata-se de um sistema altamente ineficaz no combate à criminalidade, profundamente marcado pela violência policial e prisões conhecidas por suas condições medievais. A redução da maioridade penal resultaria em maior encarceramento de jovens em um sistema prisional falido, superlotado, com claras evidências de maus tratos, condições desumanas e práticas de tortura.

Colocar os menores de 18 anos em privação de liberdade nas mesmas instalações dos adultos deixaria esses jovens vulneráveis a abusos e aliciamento por parte de facções criminosas organizadas dentro das prisões, comprometendo dramaticamente suas perspectivas de reabilitação. O índice de reincidência de egressos das prisões é muito maior do que de egressos do sistema socioeducativo.

Ao reduzir a maioridade penal, o Estado e a sociedade brasileira mandam um sinal de que estariam desistindo de uma parcela de suas crianças e adolescentes, abrindo mão de suas responsabilidades na educação e promoção de seus direitos. A juventude dos territórios periféricos e das favelas carece de oportunidades de acesso ao lazer, cultura e educação, condições essenciais na construção de uma vida livre da violência. O potencial de criatividade e inteligência desses territórios precisa ser estimulado, com valorização das iniciativas já existentes e criação de novas. Deveria ser essa a prioridade.

Não se promove justiça e segurança pública às custas da redução dos direitos justamente daqueles que mais necessitam do apoio e da solidariedade da sociedade: as crianças e adolescentes em situação de risco. Isso seria um passo trágico em direção à barbárie.

BRASIL OBSERVER – EDIÇÃO 27