Uma noite com a diva Elza Soares

Brasil Observer - dez 06 2016
bo_16-17-destaque
Foto: Divulgação

(Read in English)

 

Cantora brasileira emociona o público em Londres e conversa com o Brasil Observer: ‘O segredo é cantar até o fim’

 

Por Guilherme Reis

Do alto de seu trono posicionado no centro do palco, rodeado pelos músicos de sua banda, Elza Soares pede ao público que grite. “Eu quero ouvir gritos, assim fica bom, quero ouvir barulho”. A plateia responde prontamente, emocionada diante da diva da música popular brasileira.

O show de Elza Soares no Barbican, em Londres, dia 13 de novembro, foi tão potente quanto a voz rouca da cantora prestes a completar 80 anos de vida e 60 de carreira. Nem os problemas de saúde que a obrigam cantar sentada são suficientes para abalar seu poder em cima do palco.

Elza brindou o público com o repertório do disco “A Mulher do Fim do Mundo”, que dias após a apresentação venceu o Grammy Latino 2016 na categoria “Melhor Álbum de Música Popular Brasileira”. Primeiro álbum com músicas inéditas escritas especialmente para Elza, o trabalho foi gravado no final do ano passado e conta com letras críticas que abordam racismo, homofobia e a violência contra a mulher, entre outros temas.

“É um trabalho muito forte, foi maravilhoso. Ninguém imaginava que fosse ser tão forte assim. É um presente divino”, disse Elza Soares ao Brasil Observer em seu camarim, horas antes do show em Londres.

 

PLANETA FOME

Elza da Conceição Soares nasceu em 1937 na favela Moça Bonita, no Rio de Janeiro. Filha de mãe lavadeira e pai operário e músico amador, mudou-se ainda jovem com a família para o bairro Água Santa.

Aos 12, obrigada pelo pai, casou-se com um homem dez anos mais velho, com quem teve cinco filhos, o primeiro aos 13. Dos cinco, um morreu de subnutrição e outro foi entregue para adoção. Aos 21 anos ficou viúva.

A primeira vez que Elza Soares subiu em um palco foi em 1953, aos 16 anos, em um programa de rádio apresentado pelo lendário Ary Barroso. Na ocasião, o público reagiu a sua aparição com risos – Elza pesava 45 quilos. O apresentador aproveitou a onda e perguntou de que planeta aquela menina vinha, no que ela respondeu “do mesmo planeta que o senhor”. Ele então retrucou “que planeta é esse?”. E Elza respondeu: “do planeta fome”. Após cantar “Lama”, de Aylce Chaves e Paulo Marques, Elza ouviu de Barroso: “nesse momento nasce uma estrela”.

No camarim do Barbican, o repórter quer saber como ela responderia aquela questão se a mesma fosse feita hoje. “Da mesma maneira. Planeta fome. Ainda vejo muita coisa errada. Muita gente dormindo na rua, muita criança sem escola, sem educação, sem cultura. Planeta fome”.

 

CANTORA DO MILÊNIO

Elza Soares fez sua primeira gravação em 1959, uma versão de “Se acaso você chegasse”, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins. Os anos seguintes foram de ascensão meteórica, com grandes sucessos e dezenas de discos gravados. Entre as músicas cantadas por Elza mais tocadas no Brasil estão “Boato” (1961), “Cadeira Vazia” (1961), “Só Danço Samba” (1963), “Mulata Assanhada” (1965) e “Aquarela Brasileira” (1974).

Nascida musicalmente no samba, Elza Soares sempre teve facilidade para percorrer os mais diversos ritmos musicais, do jazz à bossa nova, do hip hop ao rock n’ roll. Não à toa foi escolhida pela BBC, em 1999, como a cantora brasileira do milênio. A escolha teve origem no projeto The Millennium Concerts, criado pela emissora para comemorar os anos 2000.

A carreira, porém, não passou sem alguns percalços. Elza teve um longo relacionamento com o jogador de futebol Garrincha, campeão mundial com a seleção brasileira em 1962, no Chile, e sofreu com a opinião pública. Garrincha era casado e tinha nove filhos, o que não pegava bem num país conservador às portas de uma ditadura civil-militar. Elza, aliás, chegou a se exilar em Roma com medo de represálias dos militares.

A potência de sua voz, porém, falou mais alto. Elza é com justiça considerada a rainha do samba, uma verdadeira diva. Uma mulher que assume suas opiniões independentemente do olhar dos outros.

 

ATÉ O FIM

Toda a força de Elza Soares transparece em seu último disco. Na música “Maria da Vila Matilde”, a cantora incentiva as mulheres vítimas de violência doméstica a denunciarem seus agressores. Em um dos versos ela canta “você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.

“Num ponto de vista sempre fui feminista”, contou Elza ao Brasil Observer. “Sempre fiz tudo sozinha, sempre lutei sozinha, então sou feminista mesmo. A mulher que está aí pra lutar tem que lutar”.

Na faixa que dá nome ao disco, Elza exclama “Eu vou cantar até o fim / Eu sou mulher do fim do mundo / Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim”. Qual seria o segredo? “Não tem segredo. Enquanto eu tiver saúde e vida, vou cantar. Enquanto estiver de pé tem muita coisa pra fazer”.

O mundo da música agradece. Elza Soares é imortal.