O “Fora Temer” já não se confunde com o “Volta Dilma”, agregando setores que não queriam Dilma e tampouco Temer
Por Renan Quinalha e James N. Green
O mantra político que mais ecoou nas manifestações contra o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), ocorridas nos últimos meses no Brasil, foi “primeiro a gente tira a Dilma, depois o resto”. Esse enunciado, que parecia ser uma declaração implacável de guerra contra a corrupção sistêmica que atravessa todos os partidos políticos, arrefeceu logo após a consumação do impeachment.
Vitória dessa indignação seletiva e oportunista, a Dilma saiu e o “resto” não só permaneceu, como ganhou mais espaço, na forma de um governo com um primeiro escalão formado apenas por homens brancos, de meia idade, acusados de corrupção e membros das elites mais conservadoras. Uma aliança entre o PMDB e o PSDB, partido este derrotado nas últimas quatro eleições presidenciais, assumiu o poder após a deposição de Dilma.
No entanto, o governo Temer, agora não mais provisório, enfrenta um grave déficit de legitimidade. Primeiro porque a ampla coalizão que se uniu contra Dilma é heterogênea demais para compor um mesmo governo. Tanto é assim que as primeiras fissuras e atritos entre os aliados de outrora começam a aparecer cada vez mais claramente. Segundo, pois as cobranças dos setores industriais e financeiros por reformas de retiradas de direitos, como a previdenciária e a trabalhista, impactam a vida de milhões de brasileiros e só essa ameaça já tem motivado resistências significativas. Terceiro, porque parcela significativa da mídia, inclusive algumas que apoiaram abertamente o impeachment, agora está dirigindo críticas duras ao governo Temer por suas diversas deficiências e fragilidades. Quarto, porque a narrativa que caracteriza o impeachment como um golpe de Estado ilegítimo ganhou força dentro e fora do Brasil, acometendo o novo governo de uma falta de respaldo bastante grande, que se reflete no alto índice de reprovação de um governo que mal começou. Quinto, pois têm eclodido, nas últimas semanas, grandes manifestações de rua pelo “Fora Temer” por inúmeras cidades em todas as regiões do Brasil.
Temer tem minimizado, sistematicamente, os números e a dimensão reais dos atos massivos que estão eclodindo, diversas vezes por semana por todo o país. Ainda é cedo para afirmar que tais atos terão a capacidade de inviabilizar o governo Temer ou de derrubá-lo, mas certamente não são apenas “40 pessoas” que estão indignadas com a situação no Brasil.
É impossível não lembrar, diante de milhares de pessoas que estão agora ocupando as ruas, da ebulição social tão recente que, de algum modo, esteve associada à crescente insatisfação popular que acabou servindo de caldo para consumar o impeachment: as jornadas de junho de 2013.
É verdade que as mobilizações de 2013 foram multifacetadas, com deslocamentos constantes de pautas e com diferentes grupos disputando seus sentidos e agendas desde o início. Inadequado, portanto, reduzi-la a uma manifestação antigoverno.
No entanto, um motor fundamental das maiores mobilizações daquele momento histórico foi o crescente antipetismo que tomou conta das classes médias e da mídia hegemônica, mas que agora não está mais presente em virtude do alijamento completo do PT do governo.
Assim, o governo Temer enfrentará o desafio de forjar sua legitimidade política em um contexto de crise econômica, de agitação social e de cobranças duras de fatura dos apoiadores da manobra que lhe deu origem. Além da oposição crescente, dentro das instituições e nas ruas, membros da alta direção do PMDB e dos outros partidos da base aliada de Temer estão no alvo das investigações contra a corrupção. Esse ingrediente judicial eleva o nível de incerteza e de insegurança no sistema político.
Ex-ministro que foi demitido por Temer, Fabio Medina Osório veio a público no início de setembro justamente denunciando as tentativas do governo de paralisar a operação Lava Jato, com enorme repercussão na mídia. Além disso, há diversas outras delações premiadas de empresários influentes da construção civil aguardando homologação judicial que poderão, caso aceitas, comprometer boa parte do establishment político que dá sustentação a Temer. Isso sem falar em Eduardo Cunha, o artífice do impeachment e aliado de primeira hora, que foi cassado pela Comissão de Ética da Câmara dos Deputados também em setembro e que já manifestou sua indignação por se sentir “abandonado” pelo governo, sinalizando que poderá haver algum tipo de retaliação. Outros ministros caíram nas primeiras semanas em escândalos políticos que desgastaram ainda mais o então governo provisório.
A questão do futuro da gestão Temer, assim, é repleta de variáveis ainda indefinidas e em aberto no jogo político e jurídico. Se atender às demandas do PSDB e outros setores mais neoliberais de redução de gastos públicos com direitos sociais (PEC 241) e de reformas de retirada de garantias históricas da classe trabalhadora, terminará por reforçar as mobilizações contrárias ao seu próprio governo.
Parte dos movimentos de oposição está aproveitando a onda crescente do “Fora Temer” para pautar a proposta de “Diretas Já”. No entanto, por um dispositivo constitucional, só poderá haver eleições diretas para presidente se o afastamento de Temer, seja por força das ruas seja por decisão do Tribunal Superior Eleitoral que está analisando as contas das eleições de 2014, ocorrer até final deste ano. Se seu afastamento se der a partir de janeiro de 2017, a escolha de um presidente para um mandato “tampão” até 2018 deverá ser feita de modo indireto pelo Congresso Nacional.
Outras propostas que estão emergindo são de eleições gerais com reforma política, ou seja, para todos os parlamentares também e não apenas para presidente com discussão de novas regras eleitorais capazes de ampliar a participação popular. Essa ideia esbarra na mesma urgência por conta do prazo acima exposto, com a dificuldade adicional de construir candidaturas capazes de renovar o sistema político em tão pouco tempo e demandar uma emenda constitucional que dificilmente seria aprovada pelos parlamentares que terão seus mandatos encurtados nesse caso.
A dificuldade dos movimentos de oposição será manter a constância e a intensidade das mobilizações de rua. Depois de mais de um ano de um demorado e desgastante processo de tensionamento social, esperava-se que o país alcançasse uma “paz” institucional, expectativa esta que está sendo instrumentalizada pelo governo Temer inclusive. No entanto, mesmo com essa espécie de estafa, tem havido ainda uma disposição bastante grande de resistência ao governo e que deverá crescer na medida em que as medidas impopulares já anunciadas começarem a ser implementadas, atingindo setores tradicionalmente capazes de fazer pressão política e social. Exemplo disso é a proposta de um dia nacional de paralisação geral que já foi convocado pelas centrais sindicais que desejam preservar a integridade das garantias trabalhistas contra a intenção de colocar o negociado sobre o legislado nas relações laborais.
A situação atual do Brasil é delicada. O impeachment não se efetivou como uma solução para a crise em curso. Cada vez mais, está claro que a derrubada de uma presidenta não se confunde com a legitimação de um novo governo. Com a saída de Dilma, o “Fora Temer” já não se confunde com o “Volta Dilma”, agregando setores progressistas que não queriam Dilma e tampouco Temer. Essa parece ser a posição mais difundida na população brasileira. Resta saber quais configurações institucionais e formatos poderão absorver toda essa indignação acumulada que hoje se materializa na palavra de ordem de “Fora Temer”. O desafio das esquerdas será dar uma resposta a essa questão de modo a catalisar uma agenda propositiva em meio a tanta negatividade e que seja capaz de desembocar em uma frente de forças pró-democracia que vá além das eleições de 2018.
- Renan Quinalha é candidato a doutorado em Relações Internacionais na USP e possui graduação e mestrado em Direito pela mesma universidade. James N. Green é professor de História e Cultura Brasileira na Brown University e diretor da Brazil Initiative.