Com o afastamento de Dilma Rousseff e a nomeação de José Serra ao Ministério das Relações Exteriores, a política externa brasileira sofre alterações de rumo
Por Wagner de Alcântara Aragão
Em poucas semanas, o presidente interino Michel Temer e sua equipe de ministros deram demonstrações claras de que pretendem colocar em prática um programa de governo bem diferente daquele que elegeu a presidenta Dilma Rousseff, afastada do cargo em decorrência da abertura de processo de impeachment. Entre as áreas nas quais ocorrem as modificações mais significativas está a política externa. A escolha de José Serra para o Ministério das Relações Exteriores é, por si só, um sinal inequívoco dos novos caminhos a serem trilhados nesse campo.
Serra assumiu o ministério em 18 de maio em uma solenidade bastante concorrida no Palácio do Itamaraty. Em seu discurso, embora tenha feito referências à importância do Mercosul e dos Brics (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul), ele deixou claro que pretende dar prioridade às relações com Estados Unidos, Europa e Japão. Como fez seu partido (PSDB) nas últimas três campanhas presidenciais (2006, 2010 e 2014), o novo chanceler rechaçou a opção dos governos de Lula e Dilma de maior integração com os países emergentes, principalmente do Hemisfério Sul.
Antes, todavia, o novo ministro abraçou uma missão árdua: conseguir da comunidade internacional o reconhecimento do governo de Michel Temer. As embaixadas brasileiras ao redor do mundo receberam do Itamaraty uma circular em que se pede para “combater ativamente” as acusações de que o governo interino é, na verdade, resultado de um golpe político.
LIDERANÇA REGIONAL AMEAÇADA
As incongruências do processo que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff não estão repercutindo mal apenas na imprensa estrangeira, mas têm levado lideranças e instâncias internacionais a questionarem a legitimidade do novo governo brasileiro. As evidências de que a presidenta eleita está sendo julgada essencialmente por critérios políticos e partidários – e não por razões de ordem constitucional – colocam em risco a democracia interna e, por tabela, levantam questionamentos sobre a estabilidade jurídico-institucional do país.
É o que ressalta o geógrafo Zeno Crocetti, pós-graduado em Geopolítica e professor da Universidade da Integração Latino-Americana (Unila). “Todo o casuísmo, as trapalhadas e manipulações [do processo de impeachment] fortaleceram a sensação de golpe. Apenas a Argentina expressou seu ‘respeito’. Venezuela, Cuba, Equador, Bolívia, Nicarágua, El Salvador, Uruguai e Chile deram a resposta esperada: qualificaram a situação brasileira como um golpe de Estado. Aos olhos do jogo diplomático a reação mais importante até agora, porém, foi o silêncio de Estados Unidos e Colômbia”, afirmou o professor ao Brasil Observer.
A Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio de seu secretário-geral, Luís Almagro, e a União das Nações Sul-Americanas (Unasul), também através de seu secretário-geral, Ernesto Samper, têm demonstrado resistência a aceitar o governo provisório de Michel Temer.
Para o professor e cientista político Anthony Pereira, diretor do Brazil Institute do King’s College London, essas reações farão com que seja mais difícil para o país exercer sua liderança regional na América do Sul. Ele acrescentou à reportagem, porém, que “o processo de impeachment não tem sido tão obviamente inconstitucional para causar a condenação ou suspensão do Brasil em organismos como Mercosul, Unasul ou OEA”.
FOCO NOS ACORDOS COMERCIAIS
A julgar pelo discurso de posse de José Serra como ministro, os acordos bilaterais de livre comércio serão a prioridade. O novo ministro condenou o multilateralismo que pautou a política externa das gestões Lula e Dilma. “O Brasil, agarrado com exclusividade a elas [negociações multilaterais], manteve-se à margem da multiplicação de acordos bilaterais de livre comércio. Precisamos recuperar oportunidades perdidas”, declarou.
Para o cientista político Lucas de Aragão, sócio da Arko Advice, “a diplomacia brasileira volta ao Itamaraty depois de passar anos no Palácio do Planalto”. Ao Brasil Observer, ele afirmou que “Serra será o condutor de uma política exterior focada no comércio e nos negócios, deixando de lado a política externa ideológica do governo anterior”. E que “o apoio aos países ditos bolivarianos certamente será reduzido de maneira forte”.
Opinião semelhante foi dada pelo empresário Rodrigo Scaff, sócio fundador da Suriana. “Nos últimos 13 anos, o foco do Brasil na celebração de novos acordos comerciais foi em países com menos representatividade no contexto mundial, então enxergo com otimismo a possibilidade de voltarmos a colocar energias em mercados com maior potencial de colaboração, como a União Europeia e os Estados Unidos”, afirmou.
“O Brasil continuará lutando por uma maior inserção de seus produtos em mercados externos. Há sempre a prioridade na quebra de barreiras tarifárias, especialmente em produtos do agronegócio, mas, ao mesmo tempo, o único caminho sólido para ganharmos competitividade internacional é abordarmos questões estruturais que tornam nosso custo de produção proibitivamente alto. Precisamos de melhor infraestrutura, mais flexibilidade trabalhista e um sistema tributário mais racional, que não onere tanto os produtos feitos no Brasil”, completou Rodrigo Scaff.
Nesse sentido, o novo papel da Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimento (Apex-Brasil) parece ser fundamental. “Ao tirar a Apex do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) e transferi-la para o Itamaraty, o governo interino parece sinalizar que acordos bilaterais serão buscados”, disse Anthony Pereira.
Até o fechamento desta edição, informações davam conta de que o novo presidente da Apex será o embaixador Roberto Jaguaribe, que já serviu no Reino Unido e atualmente exerce o cargo de embaixador na China.
MERCOSUL-UNIÃO EUROPEIA
Em seu discurso de posse, José Serra também defendeu a concretização de um acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. Para o professor Zeno Crocetti, a conjuntura política e econômica da América do Sul não favorece, no momento, a formalização desse acordo. “Tivemos um avanço fragmentado e complicado de modelos de governos populares. Com a volta do desemprego e da inflação, esses modelos começaram a desmoronar, então começou a volta gradativa de forças reacionárias ao poder. Se não houver mudanças nesse cenário, em curto prazo não vejo condições concretas para um acordo Mercosul-União Europeia”, avaliou.
Na opinião do professor Anthony Pereira, “a esperança do governo interino de Michel Temer é de que a proximidade com a Argentina permitirá ao Brasil negociar em conjunto com aquele país, colocando fim a uma longa negociação”. O último encontro entre Mercosul e União Europeia aconteceu em 11 de maio, quando foi realizada a primeira troca de ofertas tarifárias, que afeta principalmente os produtos agropecuários.
Anthony Pereira ressaltou, porém, que as negociações estão estagnadas não apenas pelas diferenças entre Brasil e Argentina. “Os interesses da França em proteger seus pequenos fazendeiros ainda é um obstáculo considerável. Não está claro se agora será possível chegar a um acordo”.
Para piorar as ambições brasileiras, um grupo de 34 deputados europeus pediu à comissária de política externa da União Europeia, Federica Mogherini, a suspensão das negociações do acordo com o Mercosul. Para os membros do Parlamento Europeu, o pacto comercial não pode ser negociado por um governo sem legitimidade democrática, em referência à administração interina de Michel Temer. Até o fechamento desta edição, nem Federica Mogherini nem o Itamaraty haviam se manifestado.
FUTURO DO PRÉ-SAL
A nomeação de José Serra para o Ministério das Relações Exteriores reacendeu a expectativa de abertura da exploração das reservas de petróleo da camada pré-sal aos players internacionais. Afinal, é de autoria do próprio Serra o projeto de lei, aprovado pelo Senado em fevereiro, que tira da Petrobras a obrigatoriedade de participar de todos os poços de exploração como operador único – e com 30% mínimo de sociedade. A proposta ainda precisa ser aprovada pela Câmara dos Deputados.
Para James Green, professor de história latino-americana e diretor da Iniciativa Brasil da Universidade Brown, nos Estados Unidos, “está bastante evidente que as forças a favor do impeachment [da presidenta Dilma Rousseff] estão interessadas em renegociar os acordos em torno do uso dos royalties do petróleo que seriam dedicados à educação”. “Só podemos esperar que a proposta apresentada por Serra irá reduzir a participação da Petrobras e aumentar a exploração internacional de petróleo brasileiro”, completou o professor ao Brasil Observer.
As regras de conteúdo nacional do setor de óleo e gás provavelmente também serão mudadas. Essas regras já vinhas sido liberadas na prática, mas o governo interino pode ir além. As regras de conteúdo nacional são impopulares entre as corporações multinacionais que fazem negócios no Brasil, pois obrigam que as mesmas procurem parceiros brasileiros e a comprem produtos nacionais, desenvolvendo a indústria local.
Como opinou o professor James Green, “é impressionante que um governo interino, que pode se tornar permanente ou não, tenha em tão pouco tempo tentado mudar completamente a política externa do Brasil”.