O Acordo de Paris foi uma vitória para o Brasil, mas dúvidas permanecem em Brasília, escreve Ilan Cuperstein
Em um ano dominado por crises, a atuação brasileira na COP21 deu ao país a rara oportunidade de celebrar uma vitória nacional. No apagar das luzes de um turbulento 2015, o Acordo de Paris, resultado maior da Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, reergueu o regime climático mundial na tentativa de manter o aquecimento global inferior a dois graus Celsius. E o acordo, como colocou o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, “tem sotaque brasileiro”. Além de a proposta do Brasil ter sido quase inteiramente seguida, a mediação do país foi crucial para construir pontes. A ironia, portanto, se torna mais cruel em meio aos elogios: os dois ministérios mais presentes em Paris, do Meio Ambiente e das Relações Exteriores, estão entre aqueles que foram mais enfraquecidos durante o governo da presidente Dilma Rousseff.
Primeiro, vamos aos fatos. Depois de anos de negociações para um regime pós-Protocolo de Kyoto, ficou evidente a necessidade de engajamento de um número maior de países na tentativa de diminuir as desconfianças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Os Estados Unidos, por exemplo, deixaram claro que não estavam dispostos a negociar outro acordo em que a China, maior emissor de gases de efeito estufa do mundo desde 2006, não tivesse nenhuma obrigação ou meta. Para alcançar essa universalidade, a forma encontrada foi introduzir maior flexibilidade. E o instrumento para essa flexibilidade foram os chamados INDCs (Intended Nationally Determined Contributions), que deveriam ser apresentados por todos os países antes das negociações e em diversas formas – metas absolutas, projetos específicos ou implementação de políticas públicas específicas. Na prática, os INDCs seguiram a proposta brasileira de “diferenciação concêntrica”, pela qual os países convergiriam progressivamente para obrigações mais ambiciosas e precisas. Essa proposta representou continuação da posição nacional de defesa inegociável do direito ao desenvolvimento, colocando maiores expectativas de metas ambiciosas para países ricos e permitindo às nações mais pobres a proteção ambiental sem risco de sacrifício ao tão necessário crescimento socioeconômico.
Como líder, o Brasil deu exemplo ao ser o primeiro país em desenvolvimento a declarar metas absolutas de redução de emissões em seu INDC. O Brasil se comprometeu a reduzir 37% das emissões até 2025 e 43% até 2030, em comparação aos índices de 2005, destacando-se por não usar projeções de emissões ou emissões por unidade do PIB, como a maioria dos países em desenvolvimento. Além disso, o Brasil também não condicionou o alcance das metas ao acesso a financiamento internacional, deixando claro que as metas se tornaram política pública abrangente e não somente questão a ser tratada no âmbito internacional. Vale ressaltar também que a meta em si é ambiciosa ao objetivar maior uso de energias renováveis (45% até 2030) em uma matriz já considerada limpa e a continuação do bem-sucedido programa de reflorestamento e combate ao desmatamento da floresta amazônica, que reduziu seu desmatamento em 82% de 2004 a 2014.
A meta do INDC brasileiro que mais gerou críticas foi a de eliminação do desmatamento ilegal até 2030. Isso não só causa estranheza pela admissão explícita de que a lei ainda não é cumprida, como é um retrocesso posto que o Plano Nacional sobre Mudança do Clima de 2007 determinava como prazo para o fim do desmatamento ilegal o ano de 2015. O desmatamento na Amazônia, embora tenha diminuído, ainda é o maior do mundo. Essa questão rendeu à Ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, o Troféu Cara de Pau, entregue pela ONG Engajamundo na Embaixada do Brasil em Paris.
Entretanto, até mesmo em relação a essa crítica, podemos celebrar outro louro da posição brasileira: a vibrante e ativa participação da sociedade civil, que compôs a maior delegação nacional à Paris, com mais de 800 pessoas, todas credenciadas. Apesar de ainda ter amplo espaço para refinar os padrões de participação na formulação da política climática nacional, o Itamaraty destacou-se mais uma vez pelo diálogo permanente antes e durante as negociações com diferentes atores da sociedade civil e governos subnacionais. Essa viva interação entre Estado e sociedade pode ser entendida como uma causa e consequência do protagonismo que a temática ambiental, e mais especificamente a questão climática, alcançou no cenário nacional.
Se Paris foi uma vitória, grandes dúvidas permanecem em Brasília, porém. Antes mesmo de crises politicamente paralisantes terem se assentado sobre a capital brasileira, o governo Dilma já anunciava o enfraquecimento do Itamaraty e do Ministério do Meio Ambiente. A diminuição dramática de aporte para o tradicional Ministério das Relações Exteriores tornou árdua a continuação do crescimento da liderança brasileira nas diversas pautas internacionais alavancado pelo governo do ex-presidente Lula. O MMA, que durante aquele governo ganhou destaque inédito com figuras fortes como Marina da Silva e Carlos Minc, foi entregue à Izabella Teixeira, uma competente técnica, mas sem poder político para enfrentar grandes interesses ou pleitear maior fatia do orçamento federal. Até mesmo o Ministério de Ciência e Tecnologia, crucial para o monitoramento, coleta e análise de informações referentes ao meio ambiente, foi ocupado por Aldo Rebelo, um confesso descrente do fenômeno de mudanças climáticas causadas pelo homem, já tão provado e explicado pela comunidade científica internacional. Diante desses movimentos e da fragilidade da presidente Dilma, a bancada ruralista se uniu desde a discussão do novo Código Florestal e hoje caminha a passos largos para dar ao Brasil o vergonhoso título de maior consumidor de sementes transgênicas do mundo. Em outro esforço para o retrocesso, esta mesma bancada tenta retirar da União e passar ao Congresso a competência para a demarcação de terras indígenas, evocando o discurso colonialista e genocida de que índios não só não são merecedores dos mais básicos direitos e reparações como representam entrave para o mítico “desenvolvimento”. Os grupos indígenas, que ao mesmo tempo sofrem com a marginalização social e a violência estrutural e física, são também responsáveis pela preservação de grande parte das florestas nacionais ainda intocadas. Não à toa, o desmatamento na Amazônia teve aumento de 16% no último ano, ligando o alerta para a maior conquista ambiental e climática brasileira até hoje.
Por essas e outras, Mário Montovani, um dos mais importantes lobistas ambientais no Congresso Nacional, recentemente afirmou que Dilma faz o “pior governo da história para o meio ambiente”. A alcunha parece exagerada quando nos lembramos do regime militar, que via a natureza (e muitos daqueles que nela habitavam) como inimiga a ser derrotada e conquistada em prol do desenvolvimento, mas a crítica merece reflexão. Assim como a política externa, a política ambiental hoje é um dos maiores alvos do desmonte de um projeto de país, tão bem sonhado e iniciado no primeiro mandato do governo Lula. O Brasil de Brasília precisava de um pouco mais do Brasil de Paris para tornar a política climática nacional um sucesso convincente.
*Ilan Cupertein é representante da COPPE/UFRJ no Centro China-Brasil de Mudança Climática e Energia de Inovação Tecnológica
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Publicado originalmente na edição 35 do Brasil Observer