Justiça ainda que tardia

brasilobserver - dez 29 2015
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Manifestação em Londres (Foto: Gui Tavares)

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Após rompimento da barragem do Fundão, Brasil tem o desafio de reagir ao maior desastre ambiental de sua história e fazer justiça aos atingidos pela tragédia

 

Por Rachel Costa

Quando a barragem do Fundão se rompeu em Mariana, na quinta-feira 5 de novembro, poucas foram as reações imediatas. Visto de agora, o silêncio exagerado parece explicar-se por um cálculo extremamente mal feito do real tamanho da catástrofe humana e ambiental que se iniciou no exato momento em que aqueles 55 milhões de metros quadrados de rejeitos romperam a barreira do reservatório e se lançaram furiosamente sobre o que encontraram à frente: árvores, arbustos, cavalos, pessoas, casas, carros e, finalmente, um rio. Não qualquer rio, mas sim um braço d’água de mais de 800 quilômetros, em cuja bacia vivem mais de 3 milhões de pessoas, casa de uma das poucas reservas de Mata Atlântica do país (o Parque Estadual do Rio Doce) e que, apesar do destino salgado, tem Doce como nome.

Foi quando a lama do Fundão chegou ao rio Doce que o Serviço Geológico do Brasil emitiu uma nota alertando 15 municípios, em dois estados, sobre o risco de enchentes. O serviço estimava que o “tsunami marrom”, como foi apelidado, chegasse ao mar na terça-feira 10. A previsão, porém, não se concretizou. Em vez de uma viagem breve e quase imperceptível pelas águas claras do rio Doce, a mancha marrom de rejeitos da mineração desceu incômoda e lenta. A cada nova cidade atingida, uma enchente de fotos e vídeos inundava jornais e redes sociais, misturando o pânico das populações locais à miséria do rio.

Na medida em que a lama descia, a tragédia tomava forma: 13 mortos, 18 desaparecidos, centenas de quilômetros de rio comprometidos e um dano ainda não calculado ao Oceano Atlântico nesta que foi a maior tragédia causada pelo rompimento de barragens de mineração em países ocidentais desde 1985. Naquele ano, duas represas em uma mina de fleróvio se romperam em Stava, na região norte da Itália, jogando 38 mil metros quadrados de resíduos na natureza e matando 269 pessoas.

Voltando ao Brasil, foi necessária uma semana para que a presidente Dilma Rousseff – nascida em Minas, cenário da tragédia – sobrevoasse a área. Outros 21 dias para que o Instituto para a Gestão das Águas de Minas Gerais (IGAM) publicasse os resultados das análises realizadas nas águas do Rio Doce durante o percurso da lama até o mar, mostrando altos índices de arsênio, cádmio, chumbo, cromo, níquel, mercúrio e cobre em parte das amostras. Resultados diametralmente opostos aos dados divulgados pela empresa Samarco, que desde o dia do rompimento da barragem vinha alegando que os rejeitos não eram tóxicos. Foi também preciso tempo para se descobrir que a capacidade da barragem era muito superior aos 39 milhões de metros cúbicos declarados pela Samarco aos órgãos ambientais.

 

REAÇÃO

A falta de clareza em relação ao que vem ocorrendo e a lentidão na resposta ao problema foram motivos de crítica em um relatório da Organização das Nações Unidas divulgado no dia 25 de novembro. No texto, os relatores John Knox, especialista em direitos humanos, e Baskut Tuncak, especialista em substâncias perigosas, consideraram “claramente ineficientes” os passos dados pelas companhias Vale e BHP Billiton, assim como pelo governo brasileiro. “Não é aceitável que se tenha levado três semanas para se ter informações sobre os riscos de contaminação”, registraram os especialistas. “Governo e companhias deveriam estar fazendo de tudo para prevenir futuros danos, incluindo a exposição a metais pesados e a outros poluentes”.

O puxão de orelhas internacional parece ter acordado o poder público brasileiro. Na mesma semana, no dia 27, os ministros do meio ambiente, Izabella Teixeira, e da Advocacia-Geral da União, Luís Inácio Adams, anunciaram que a União, mais o governo dos dois estados afetados pelo rompimento da barragem vão abrir processo no valor de R$ 20 bilhões contra Samarco, Vale e BHP. “É o maior desastre ambiental que o Brasil já viveu. E não é um desastre natural, é um desastre provocado por uma atividade econômica, então cabe reparação de danos, além das multas”, disse a ministra durante o anúncio.

O mesmo tom foi adotado pela presidente Dilma Rousseff em Paris. Durante a COP, a chefe do executivo reiterou a responsabilidade das companhias na tragédia e prometeu agir. “Estamos reagindo pesado com medidas de punição, apoio às populações atingidas, prevenção de novas ocorrências e também punindo severamente os responsáveis por essa tragédia”, disse a presidente.

 

NOVOS RISCOS

Punir, porém, não põe fim ao pesadelo vivido pelas comunidades afetadas pelo derramamento da barragem. Após a tragédia, veio à tona que as outras duas represas vizinhas a Fundão, Germano e Santarém, também estão comprometidas e correm o risco de romperem-se. Caso isso ocorra, o estrago será ampliado consideravelmente: a barragem de Germano, sozinha, armazena uma quantidade de resíduos equivalente a quatro vezes o tamanho da represa que se rompeu.

O medo de que um desastre ainda maior aconteça levou a uma decisão judicial publicada na sexta-feira, 27, determinando o esvaziamento da usina hidrelétrica Risoleta Neves, a cerca de 100 km de Mariana. O plano é, em caso de um novo rompimento, usar o reservatório para a contenção dos rejeitos, evitando que eles viagem mais uma vez por todo o rio, indo desaguar nas águas do Oceano Atlântico.

Além disso, a Justiça mineira determinou a criação e a implementação de um plano de emergência para a evacuação das comunidades que possam ser afetadas caso uma nova tragédia ocorra. Depois da tragédia em Bento Rodrigues, descobriu-se que há seis anos a Samarco havia contratado uma empresa especializada em segurança, a RTI (Rescue Training International), para criar planos emergenciais para suas unidades no Pará, Espírito Santo e Minas. A proposta, entretanto, nunca saiu do papel.

Em entrevista para o jornal Estado de Minas, o diretor da RTI, Randal Fonseca, disse que o pretexto da Samarco para a inércia era a impossibilidade de investir em segurança devido à crise econômica. “O documento incluía até o treinamento da população no caso de precisar sair com segurança do local”, disse Fonseca ao jornal mineiro. O treinamento, assim como as outras ações propostas, nunca aconteceu.

Quando Fundão se rompeu, foi a mobilização da própria comunidade que impediu ainda mais mortos. Gente como Paula Alves, que trabalhava na região da mina e recebeu pelo rádio comunicador a notícia do rompimento da barragem. Sem pestanejar, Paula pegou sua moto e saiu correndo rumo ao povoado para avisar aos outros sobre o mar de lama que vinha em direção a Bento. Em uma história cheia de vilões, Paula tornou-se uma heroína: não fosse ela, grande parte dos moradores de Bento teria sido engolida pela lama.

 

IMPACTO AMBIENTAL

Um mês depois do rompimento e com rejeitos da barragem espalhados desde Mariana até o Oceano Atlântico, ainda não se tem claro exatamente qual o impacto ambiental da tragédia, nem quanto tempo se levará para recuperar as áreas atingidas pelo tsunami marrom que desceu do Fundão. Só em peixes, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) disse ter recolhido nove toneladas de espécies mortas após a passagem dos rejeitos, seis delas no trecho mineiro do Rio Doce e o restante na parte capixaba. Quantos outros animais e plantas morrerão pela deterioração das condições da água, é difícil calcular.

Como lembra a geoquímica Kendra Zamzow, do Center For Science In Public Participation (CSP2), nos Estados Unidos, mesmo que os metais pesados encontrados no rio estejam presos aos sedimentos, o que reduz os riscos de contaminação da água, há outros problemas que precisam ser monitorados daqui em diante. O principal deles é o depósito dos rejeitos no fundo do rio, que pode levar à formação de uma espécie de “cimento” no leito, afetando a vida de todo o ecossistema aquático.

 

ESPERANÇA DE MUDANÇAS

Diante do cenário desolador de um rio e comunidades arrasadas pela lama e de uma história permeada por casos de inércia e ineficácia por parte do governo e das empresas, resta olhar para o futuro e esperar que o presente ao menos sirva de lição. Não só para o Brasil, mas para o mundo, fala o geofísico David Chambers, também do CSP2. Chambers criou uma base de dados com o registro de problemas em barragens de rejeitos em todo o mundo, cobrindo todo o último século.

Ao resgatar e reunir essas informações em um mesmo local, o pesquisador descobriu que, embora tenha havido uma redução na quantidade de eventos com o avançar da tecnologia, os rompimentos se tornaram muito mais graves com o passar dos anos. Na base de dados de Chambers, a maior concentração de acidentes muitos sérios está na primeira década do século 21. Entre 2000 e 2009, foram 10 rompimentos com essa classificação ao redor do mundo. Comparativamente, entre 1950 e 1959, não houve nenhum evento muito sério. A previsão do cientista é de que a mesma média observada na década passada se repita até o encerramento desta década, com uma média de um grande rompimento de barragem a cada ano. Fundão foi apenas um deles.

E o problema, fala Chambers, está longe de ser só brasileiro. “Quando divulguei meu estudo, a resposta que recebi foi a de que um grande rompimento nunca aconteceria na América do Norte. Seis meses depois, aconteceu o rompimento da barragem em Mount Polly”, diz o geofísico, referindo-se ao desastre ocorrido no Canadá em 2014, quando 23 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram lançados no meio ambiente, atingindo reservatórios de água da região e destruindo um lago usado para a criação de salmão.

É por isso que Chambers acredita que o caso brasileiro pode incentivar a criação de normas internacionais que ajudem a pôr limites às mineradoras. “Quando ocorre um rompimento desses, é preciso recuperar o meio ambiente, pagar às pessoas que tiveram casas destruídas, vidas perdidas, negócios destruídos… Tudo isso precisa ser compensado e o governo não tem nenhuma garantia financeira para cobrir esse gasto. Ele depende das companhias, o que é um problema porque os seguros das empresas também não cobrem catástrofes causadas pelo rompimento das barragens”, analisa o especialista, que defende a criação de fundos mantidos pelas próprias mineradoras que possam cobrir os custos nos casos de emergência. “Não sei quão forte é a regulação ambiental no Brasil, mas o país certamente tem muita mineração e é muito impactado por ela”, avalia Chambers.

 

DA LAMA AO CAOS

55 milhões de m3 de lama seguiam Rio Doce abaixo enquanto poder público e empresas envolvidas assistiam inertes à concretização da tragédia

 

5 de novembro: A vila de Bento Rodrigues, em Mariana, é completamente destruída por rejeitos de uma mina operada pela Samarco, empresa controlada pelas gigantes Vale e BHP

O rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, cujos donos são a Vale a anglo-australiana BHP, causou uma enxurrada de lama que inundou várias casas no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais. Inicialmente, a mineradora havia afirmado que duas barragens haviam se rompido, de Fundão e Santarém. No dia 16 de novembro, a Samarco confirmou que apenas a barragem de Fundão se rompeu. Local: Distrito de Bento Rodrigues, Município de Mariana, Minas Gerais. Foto: Rogério Alves/TV Senado

6 de novembro: O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) lança seu primeiro alerta para 15 cidades banhadas pelo rio Doce e estima que a lama chegaria ao mar no dia 10 de novembro, previsão que não se concretizou.

9 de novembro: A lama chega a Governador Valadares, primeira grande cidade atingida, cortando o abastecimento de água para seus 278 mil habitantes, totalmente dependentes do Rio Doce.

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12 de novembro: Apenas uma semana depois da tragédia, a presidente Dilma Rousseff, nascida no estado de Minas Gerais, visita a região.

Região de Mariana - MG, 06/11/2015. Presidenta Dilma Rousseff durante sobrevoo das áreas atingidas pelo rompimento das Barragens Fundão e Santarém. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

16 de novembro: O “tsunami de lama” atinge o Espírito Santo, na altura do município de Baixo Guandu.

17 de novembro: A empresa Samarco reconhece que Germano e Santarém, as outras duas barragens vizinhas a Fundão, também correm riscos de rompimento.

22 de novembro: A mancha marrom de rejeitos invade o mar no município de Linhares, no Espírito Santo, mudando a cor das águas.

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25 de novembro: ONU se pronuncia sobre a tragédia pedindo ao governo brasileiro e às empresas envolvidas que tomem medidas imediatas para proteger o meio ambiente e as comunidades.

27 de novembro: Vale anuncia a criação de um fundo voluntário para a recuperação do Rio Doce, sem informar valores e isenta-se de responsabilidade em indenizações para os atingidos pela tragédia.

4 de dezembro: Em evento realizado em Londres, sob protesto de manifestantes na entrada de hotel, Vale diz esperar que todos os desalojados pela tragédia estejam em casas permanentes até o Natal.

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BRASIL OBSERVER #34

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