A votação da redução da maioridade penal é uma metáfora de como os conflitos políticos são no Brasil
Por Dennis de Oliveira*
A votação da PEC 171 que reduz a maioridade penal para 16 anos trouxe várias lições e inquietações. A primeira delas, a mais evidente, é que a mobilização dos movimentos sociais tem força. Graças a ela que a PEC foi derrotada na votação do dia 30 de junho. A outra é que a direita também tem força. Logo após a derrota, deputados direitistas se rearticularam, aproveitaram as “pedaladas” regimentais do presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, para votarem uma proposta quase que idêntica a que foi derrotada e conseguiram reverter o resultado – desta vez, com uma presença pequena de representantes dos movimentos sociais, seja porque muitos tinham se retirado de Brasília e também pela decisão autoritária do presidente da Câmara que proibiu pessoas nas galerias do plenário.
A discussão da redução da maioridade penal é apenas a ponta do iceberg. Pesquisa DataFolha mostra que 90% da população apoia a medida. Programas “jornalísticos” especializados em notícias policiais vêm fazendo uma verdadeira campanha sutil pela redução. Dão destaque a crimes e delitos praticados por menores de idade, dando a impressão de que a maior parte da violência é praticada por eles (quando, na verdade, apenas 1% dos crimes hediondos é praticado por menores de 18 anos). E mais: não cobrindo e cobrando as autoridades pelo desrespeito às normas do Estatuto da Criança e Adolescente, geram a sensação de que esta lei é inócua, ou pior, garante a impunidade das crianças e adolescentes infratoras.
Com isso, criou-se o que o pensador estadunidense Walter Lippmann chama de “pseudoambiente”. Segundo Lippmann, os cidadãos agem sobre uma realidade imaginada e, portanto, a opinião pública é produto de construções de determinadas estruturas. Os 90% da população que defendem a redução da maioridade penal, certamente, consideram que a violência é produto da impunidade, que ela é praticada majoritariamente por menores de idade e que as leis existentes não punem suficiente para dirimir os crimes. Daí, a solução mais fácil é recrudescer as penas e defender as práticas violentas.
Boa parte destes que defendem tais posições são justamente pessoas moradoras da periferia que são as que mais sofrem com a violência policial e o recrudescimento da lei, já que, como os dados indicam, há uma seletividade de raça e classe nas punições (basta ver o perfil social dos encarcerados ou das vítimas de violência policial).
O movimento negro tem reforçado as bandeiras de luta contra o genocídio da juventude negra. E não sem perplexidade, principalmente porque nos últimos anos avançou-se de forma significativa na elaboração de políticas públicas de combate ao racismo. Cotas, Lei 10639, Estatuto da Igualdade Racial, secretarias… Mesmo assim, o extermínio de jovens negros e negras nas periferias continua, chamando a atenção até mesmo da Anistia Internacional.
Aí entra o dilema. Essa aparente contradição decorre, justamente, de uma lacuna no projeto político dos partidos progressistas que governam o país desde 2003: não basta apenas incluir pelo consumo (o que é importante) se não se constituir um projeto político de ruptura com uma ordem patrimonialista, classista, racista que foi edificada desde o século 19 com a abolição inconclusa da escravidão, o projeto eugenista de Nação e a concepção positivista de República. Desde então, o que se vê é uma sociedade capitalista que se sustenta no tripé da cidadania restrita e não universal; concentração de propriedade e riqueza e violência como prática política sistêmica.
A cada avanço dos segmentos subalternizados, a direita se rearticula e dá o contragolpe. A ação do presidente da Câmara dos Deputados durante a votação da redução da maioridade penal é uma metáfora de como os conflitos políticos são no Brasil. O equívoco de parte da esquerda é não perceber este processo de luta e não sinalizar para ações de profunda reforma e refundação do Estado brasileiro.
* Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, jornalista e ativista do Coletivo Quilombação; este artigo foi publicado originalmente na edição 203 da Revista Fórum (www.revistaforum.com.br), e editado pelo Brasil Observer
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