O grupo avança, mas precisa criar alternativas e não manter os países como reféns do mercado financeiro
Por João Antonio Felício*
Os BRICS já deixaram de ser uma completa novidade nas relações internacionais. Desde o seu surgimento como uma sigla formulada pelo mercado financeiro, até a estratégica criação do seu Banco de Desenvolvimento e de um Acordo Contingente de Reservas, este bloco vem se consolidando progressivamente como uma referência política inevitável na atual ordem mundial. Cada vez mais é importante saber o que pensam e o que querem os BRICS. É grande a expectativa em torno da próxima Cúpula Presidencial do bloco, que este ano estava marcada para o dia 10 de julho em Ufa, na Rússia.
A despeito da heterogeneidade de seus membros e das dificuldades inerentes à construção de qualquer mecanismo intergovernamental, os BRICS já começam a se posicionar conjuntamente em fóruns multilaterais – como recentemente o fizeram na Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao defender que esta tenha um papel de liderança na definição dos objetivos, metas e indicadores relacionados ao trabalho decente nas negociações da Agenda de Desenvolvimento Pós-2015 da ONU – e pode-se dizer que a mera criação do bloco tem servido de impulso às negociações bilaterais entre os países-membros, ainda que o maior fluxo continue a ser de todos com a China e vice-versa.
Muito se fala do peso dos BRICS com relação ao tamanho da sua população (cerca de 40% de toda a humanidade) e à parcela do PIB mundial que é produzida nesses cinco países (em torno de 25%). Contudo, a situação laboral nos países dos BRICS tem recebido pouca atenção dos analistas e dos meios especializados.
A População Economicamente Ativa (PEA) dos BRICS representa um enorme potencial produtivo, que hoje corresponde a mais de 1,5 bilhão de trabalhadores e trabalhadoras na ativa, com idade média relativamente baixa. Exceto pela África do Sul (25,1%), os níveis de desocupação nestes países são baixos para os padrões internacionais, ficando abaixo de 7% em todos eles.
O desenho e a implementação de políticas públicas de educação, emprego e renda que de fato melhorem a situação do mercado de trabalho principalmente para os jovens, as mulheres e os negros, representaria um importante impulso econômico para cada um dos países dos BRICS. Decorre daí a imensa importância de uma maior e mais intensa coordenação entre os Ministérios do Trabalho dos cinco países, que possibilite avanços no campo dos direitos trabalhistas e novas possibilidades de cooperação. A institucionalização do Fórum do BRICS Sindical como um espaço oficial dos BRICS, assim como já é o Fórum Empresarial, é de extrema importância e seria um sinal dos governos nacionais de que se busca construir um melhor modelo de integração laboral no bloco.
Infelizmente, em países como o Brasil, temos visto acontecer exatamente o contrário: na pressão por maiores margens de lucro, o setor privado vem fazendo pesado lobby no Congresso Nacional para a aprovação de um Projeto de Lei que, com o pretexto de regulamentar a terceirização de 12 milhões de trabalhadores, pretende precarizar o trabalho de mais de 40 milhões que atualmente têm seus direitos garantidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas.
O próprio governo brasileiro enviou ao Congresso medidas provisórias que dificultam o acesso dos trabalhadores ao benefício do seguro-desemprego e a outros direitos. É notório que o emprego formal e respaldado em uma relação de direitos laborais garantida na Constituição é um dos pilares fundamentais do desenvolvimento social de uma nação. Ao caminhar na direção da ampliação do mercado de trabalho terceirizado, o Brasil vai na contramão de economias desenvolvidas e das convenções internacionais da OIT.
Aliás, são várias as convenções da OIT não ratificadas por todos os países dos BRICS. Algumas delas são indispensáveis para a organização dos trabalhadores e a garantia dos seus direito, como a Convenção 29 sobre Abolição do trabalho forçado ou obrigatório (China não ratifica) e a Convenção 87 sobre Liberdade Sindical e proteção ao direito sindical (Brasil, China e Índia não ratificam).
De forma geral, a expansão da informalidade e da terceirização precisa ser combatida não apenas no Brasil, mas também nos outros países-membros dos BRICS, sobretudo na Índia e na África do Sul. A adoção de um piso de proteção social é urgente e colocar o trabalho no centro dos projetos de desenvolvimento quer dizer fomentar o bem-estar social contra o bem-estar do grande capital – que pelo menos desde a crise de 2008 tem sido incessantemente salvo com recursos públicos dos Estados. Significa também priorizar a economia real em detrimento do cassino rentista neoliberal que aprisiona as políticas macroeconômicas ao tripé de juros altos, com inflação e crescimento baixos. De pouco adiantará a criação do Banco de Desenvolvimento e do Acordo de Reservas se as políticas econômicas, de emprego e renda dos BRICS continuarem reféns do mercado financeiro.
Além disso, estes dois instrumentos recém-criados devem abolir, de uma vez por todas, práticas draconianas como as condicionalidades cruzadas embutidas nos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, cruelmente impostas a governos em dificuldades de liquidez ou em busca de investimentos. Somente através de uma prática política e econômica distinta é que os BRICS terão legitimidade para disputar a hegemonia da política internacional com as nações hoje dominantes.
O que está em jogo com a existência dos BRICS é a possibilidade de se construir um caminho mais autônomo de desenvolvimento nacional e inserção internacional, que seja distinto daquilo que já vigora, por exemplo, no G20, na OCDE ou na OMC. Para que isso seja realidade é preciso de alguma forma repensar o modelo de desenvolvimento em curso, não apenas no campo da economia e das finanças, mas também no da indústria, da tecnologia, da agricultura, da energia, e do meio ambiente. Sem isso, o futuro do trabalho nos BRICS estará privatizado, terceirizado e precarizado.
Acima de tudo, é preciso recuperar o valor dos direitos, do que é público e da busca de um projeto coletivo de sociedade que promova a agenda do Trabalho Decente e não os interesses rentistas. Na atual disputa de hegemonia nas relações internacionais, se não forem os BRICS a fazê-lo, então quem o fará?
*João Antonio Felício é presidente da Confederação Sindical Internacional (CSI), membro da Direção Executiva Nacional da CUT e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI; este artigo foi publicado originalmente em brasilnomundo.org.br
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