Do Alto Xingu para Londres, cineasta indígena traz a certeza de que povos tradicionais do Brasil estão preservando e expandindo o alcance de sua cultura
Por Alicia Bastos, fundadora e diretora artística do Braziliarty
Londres pode ser uma cidade caótica para muitos de nós. Imagine, então, o que pode significar para um homem indígena que cresceu em uma aldeia na região do Alto Xingu, no Estado do Mato Grosso. “Quando cheguei a Londres, a primeira coisa que pensei foi: não falo inglês, não posso ler, não sei o que dizer quando alguém se aproximar, nem como pegar um ônibus sozinho ou andar nas ruas”.
Takumã Kuikuro não estava sozinho, porém. Apoiado pelo Ministério da Cultura do Brasil e pela Fundação Nacional de Artes (Funarte) em parceria com o programa Transform do British Council, o índio brasileiro passou os meses de março e abril na capital britânica para a realização de uma residência artística, que teve ainda o suporte decisivo do People’s Palace Projects, capitaneado por Paul Heritage.
“Estou aqui em Londres filmando e promovendo o meu trabalho, a nossa cultura indígena”, explica ele. Membro do povo Kuikuro, Takumã cresceu na aldeia de Ipatse e foi treinado pelo projeto Vídeo Nas Aldeias, da ONG Centro de Trabalho Indigenista. Documentando os costumes e a cultura de seu povo, recebeu atenção internacional com seus filmes, entre eles os curtas-metragens ‘O Dia em que a Lua Menstruou’ (2004) e ‘Cheiro de Pequi’ (2006) e o longa ‘As Hiper Mulheres’ (2011). Este último, aliás, foi apresentado em sessão especial realizada na Embaixada do Brasil em Londres em abril.
Mas como tudo começou, afinal? E o que motiva Takumã Kuikuro a deixar sua família em terras brasileiras para apresentar do outro lado do mundo sua visão tão particular em relação ao nosso planeta?
PAIXÃO PELAS IMAGENS
Takumã Kuikuro nasceu em 1983. Durante quase toda sua infância, na aldeia de Ipatse, não teve escola para frequentar. Até os oito anos de idade, nunca tinha ouvido outro idioma que não o de sua tribo.
Em 1992, porém, um líder indígena local foi ao Rio de Janeiro para a conferência ecológica ECO-92 e por lá acabou ficando para estudar. Quando retornou para a aldeia no Alto Xingu, mais ou menos um ano depois, decidiu organizar aulas para transmitir seus conhecimentos e ensinar aos jovens aquilo que havia aprendido na cidade grande.
“Ele trouxe alguns lápis e cadernos, mas não o suficiente para todos. Costumávamos cortar os lápis em pedaços para que todos pudessem ter um; também os cadernos. Foi muito difícil para nós aprendermos, pois as pessoas mais velhas não podiam nos ajudar. Nós não tínhamos como procurar mais informações”, relembra Takumã.
Em 1996, o Instituto Socioambiental (ISA) criou um curso de formação de professores indígenas, dando apoio à iniciativa educacional em Ipatse, com aulas de português e matemática.
Nos anos que se seguiram, outras organizações foram chegando à comunidade indígena, inclusive o projeto Vídeo nas Aldeias (VNA), que desde 1986 promove o encontro dos povos nativos com suas imagens, ensinando modos de filmar, documentar e contar histórias.
“Desde a primeira oficina na aldeia, em 2002, me senti muito curioso. Quando comecei a filmar, não consegui mais parar. Foi Vincent Carelli quem me ensinou como segurar uma câmera pela primeira vez”.
QUESTÃO DE IDENTIDADE
A paixão de Takumã pelas imagens continuou crescendo e ele sentiu que sua missão era ajudar a sua comunidade a manter a própria cultura. Não era uma missão qualquer. O próprio Cacique Kuikuro, chefe da comunidade, se preocupava, pois os jovens estavam perdendo o interesse pela cultura tradicional, pelos cantos e rituais.
“Meu papel é arquivar a cultura de nossa comunidade. Sou responsável pela documentação e por ensinar como documentar. Temos dois tipos de trabalho: primeiro documentamos os rituais, passo a passo, e depois fazemos uma sequência simples para editá-los. Nossos arquivos são então usados para ensinar nossos jovens. Para eles eu sou um exemplo, sou o primeiro que fez isso acontecer, então eles querem fazer como eu. Eles me veem fazendo esse trabalho e querem aprender, viajar também. Eles me veem representando a cultura Kuikuro, toda a cultura indígena brasileira”.
Takumã explica que os materiais do arquivo também são compartilhados com outros povos indígenas. Por outro lado, não compartilham nem vendem para as pessoas que não são indígenas, simplesmente porque o conteúdo não seria ser compreendido.
Outro tipo de trabalho são os filmes que, além de serem mostrados nas comunidades indígenas, rodam o mundo – contando fatos do cotidiano nas aldeias, apresentando a cultura tradicional e os rituais.
“Quando viajamos pelo Rio Xingu para compartilhar nosso trabalho com outros povos indígenas, levamos tudo: gerador, equipamentos, todos os filmes. Quando chegamos às aldeias podemos ouvir os geradores ligados e o povo assistindo meus filmes. Isso é muito importante. É um processo muito profundo para os indígenas. Eles são mal influenciados pelos canais de televisão comerciais e perdem interesse pela sua própria cultura. Ver a nós mesmos na tela nos faz perceber coisas, nos faz aprender com nossas próprias imagens”.
Takumã comenta sobre as várias questões que a televisão traz, como a idealização de pessoas não indígenas, seus nomes e a tentação do estilo de vida consumista. Nomes indígenas começaram a se tornar raros e o medo da violência e do abuso começou a crescer. Consequentemente, pela falta de informação e pelas experiências anteriores, os indígenas criticavam o trabalho de Takumã no início.
“Foi muito difícil no começo. Achavam que eu ia vender tudo. Às vezes até quebravam minha câmera ou me colocavam para fora da aldeia. Alguns ainda têm a impressão de que eu estou recebendo um monte de dinheiro, porque eu viajo muito, internacionalmente também. E eu preciso explicar que não se trata de ganhar dinheiro, mas sim de preservar e promover nossa cultura para o mundo, representar o povo Kuikuro e a cultura indígena. Muitos não sabem como é nossa vida diária e as coisas que acontecem na aldeia”.
CÂMERA COM ALMA
Takumã levou muitos anos para obter confiança. Ele explica que todos os gastos com viagens são pagos, mas que não ganha nada, nem vende seus filmes. Ao ensinar as pessoas nas aldeias, ele espera que cada vez mais indígenas sejam capazes de experimentar o cinema de forma autêntica, pois entende que o ato cinematográfico não se trata apenas de uma pessoa por trás da câmera, mas de um grupo trabalhando em conjunto, contando sua história para o mundo.
“Agora somos bem-vindos, eles [os indígenas] podem compreender melhor e confiar em mim. Eles nos convidam para documentar seus rituais e eu faço, ensinando como fazer. Eles me contam suas histórias e querem estar em meus filmes. Para explicar por que essas coisas acontecem, só posso dizer que deve ser um dom espiritual”.
De fato, Takumã alcançou algo inimaginável para a maioria. “Aprendi observando. Nunca tinha deixado a comunidade e, de repente, estava dentro de um avião, que era como um sonho, eu estava voando”.
O sonho continuou. Em Londres, durante sua residência artística, o índio cineasta brasileiro percorreu a cidade com uma câmera na mão para mostrar a capital britânica como uma aldeia, com seus diferentes povos e rituais. O resultado poderá ser visto em seminário do People’s Palace Project dia 10 de junho. Quando isso acontecer, porém, Takumã Kuikuro estará no Brasil, pois é lá que tem uma missão inadiável: documentar e dar vida eterna ao seu povo.
“Não precisamos de pessoas não indígenas vindo fazer seus filmes e virando donas das nossas imagens. Podemos fazer nossos próprios filmes. Digo isso ao meu povo, para que possamos valorizar nosso trabalho de documentação e filmes indígenas. Mas para isso precisamos de patrocínio e equipamentos. Quando as pessoas querem vir e filmar, elas enviam uma proposta e nós dizemos o que queremos. Normalmente são câmeras, cabos, microfones. Acreditamos que a câmera é alimentada com a alma das pessoas, ou seja, quando nós filmamos alguém, desde que os filmes sejam vistos, aquelas pessoas filmadas viverão para sempre na comunidade”.
SAIBA MAIS
—