Guia simples para compreender a questão indígena no Brasil

brasilobserver - abr 18 2015
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Índios apontam flechas para o Palácio do Planalto. De 13 a 16 de abril, realizou-se a Semana de Mobilização Nacional Indígena (Lula Marques/Fotos Públicas)

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Desde o período colonial até as recentes batalhas no Congresso, direitos indígenas estão sob constante ameaça

 

Por Alicia Bastos*

O Brasil comemora o Dia do Índio em 19 de abril desde 1943, quando a data comemorativa foi criada pelo presidente Getúlio Vargas – em memória ao dia (19 de abril) em que diversas lideranças indígenas das Américas decidiram participar do primeiro Congresso Interamericano Indígena, realizado no México em 1940. Desde então, este dia nos propõe refletir sobre a importância dos valores culturais dos povos indígenas e o respeito aos seus direitos.

Para entender melhor a realidade dos índios no Brasil, vamos começar pelos tempos em que eles viviam em harmonia com seu povo, dentro das florestas ao longo costa brasileira e nas margens de rios.

Desde o início da colonização portuguesa, por volta de 1550, os índios eram vistos como selvagens e perigosos, sendo logo escravizados pelos portugueses para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar. Difíceis de serem capturados, os índios sucumbiam às doenças trazidas pelos europeus: milhares morreram de tuberculose, varíola e gripe, entre outras doenças.

Em 1570, o Rei D. Sebastião I determinou que os índios estavam livre da escravidão, mas a realidade escravagista sofrida pelos povos indígenas no Brasil permaneceu até 1755.

Em meados do século 16, os padres jesuítas começaram a trabalhar pela catequização dos índios, convertendo os nativos ao catolicismo. Para isso, criaram as chamadas Missões, pequenas vilas com “índios civilizados”. Por volta de meados da década de 1770, os jesuítas foram expulsos do Brasil e todos os povoados foram esvaziados e vendidos. Os povos indígenas, porém, continuaram sendo atacados ou propositalmente infectados com a varíola – quando recebiam, como doação de fazendeiros que queriam expandir suas criações de gado, roupas infectadas por antigos doentes, por exemplo.

Quando a explosão da borracha na Amazônia teve início, por volta de 1840, vários trabalhadores  foram levados para a Amazônia, porque os índios resistiram e eram considerados trabalhadores fracos e difíceis. A crescente presença de camponeses trouxe conflito com os povos indígenas e mais doenças.

Durante o mesmo período, Marshall Cândido Rondon, um oficial do Exército Brasileiro de origem  Portuguesa e Bororo, visitava a Amazônia para instalar telégrafos e acabou testemunhando a forma injusta pela qual os povos indígenas estavam sendo tratados e assim fundou o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). O compromisso de Rondon com os indígenas morreu com ele em 1958, e o que organização fazia era forçar os nativos a se enquadrarem à sociedade tradicional.

No início da década de 1960, três irmãos da família Villas Bôas que eram ativistas e trabalharam com os índios por muitos anos, fizeram um enorme esforço e conseguiram criar a primeira área indígena protegida do Brasil, o Alto do Xingu. A partir desta reserva, outras foram criadas. Eles também revelavam muitas informações de suas expedições, incluindo denúncias de atrocidades para com os povos indígenas. O filme Xingu, de Cao Hamburger, retrata a missão dos irmãos Villas Bôas.

Em 1967, o relatório Figueiredo expôs 5000 páginas com histórias de abuso sexual, trabalho escravo, violência, tortura e assassinato coletivo de indígenas, provando que a SPI era uma organização corrupta, parcialmente responsável pelo desaparecimento de ao menos 80 tribos.

Após o relatório, a SPI foi terminada. Foi então criada a Fundação Nacional do Índio (Funai), um órgão governamental de proteção aos índios e que hoje é responsável pela manutenção de políticas indígenas no Brasil, assim como a fiscalização dos direitos previstos na Constituição, no Estatuto do Índio. O trabalho da Funai inclui também o mapeamento dos povos indígenas e suas terras, de como a impedir a invasão por exploradores de recursos naturais.

É importante ressaltar que, quando a Funai foi criada, havia uma herança pesada da SPI. Em 1967, o Brasil, sob o poder dos militares, seguia um programa de expansão e exploração do território amazônico. Durante esse período, com financiamento do Banco Mundial, grandes áreas de floresta foram destruídas e transformadas em fazendas de gado; a rodovia Transamazônica foi construída; projetos de hidrelétricas começaram; e vários trabalhadores imigraram para a região. Todo esse desenvolvimento não só contribuiu para o início de uma contínua destruição do meio ambiente na Amazônia, mas afetou diretamente centenas de tribos indígenas, suas terras e sua água.

Em 1973, o Estatuto do Índio foi criado seguindo o Código Civil Brasileiro de 1916. Na redemocratização do país na década de 1980, os movimentos indígenas ganharam voz, mas só 1988, com a nova Constituição Federal, os direitos indígenas sobre suas terras tradicionais foram protegidos oficialmente.

Desde então, os povos indígenas exigem uma revisão de seu estatuto, considerando a mudança fundamental do estatuto jurídico. A revisão avançou em 1992, mas desde 1994 não é levada em consideração.

A QUESTÃO DA TERRA

A questão da terra é uma luta interminável, técnica e legalmente. A demarcação e regulamentação de terras indígenas evoluem de forma lenta, empacando na reforma agrária e nos interesses políticos e comerciais de grande empresas.Os índios e a Funai sofrem com a falta de apoio legal, o que atrasa ainda mais o processo. Em 2013, das 1.046 terras demarcadas, apenas 363 já estavam regulamentadas. No Brasil, 12% das terras pertencem a povos indígenas. Destas, 90% estão na Amazônia.

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Em 2000, surgiu a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que propõe transferir do Executivo ao Legislativo o direito de aprovar e formalizar Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Territórios Quilombolas. A proposta foi criada com o apoio do agronegócio e, desde então, a votação foi interrompida diversas vezes. Os povos indígenas pedem o arquivamento da proposta e recentemente se manifestaram em Brasília para exigir que seus direitos sejam atendidos.

A PEC 215, porém, é apenas uma das propostas em andamento no Congresso que priorizam o desenvolvimento do agronegócio e da mineração em detrimento das terras indígenas:

  • PEC 38 determina que “a demarcação de terras ou unidades de conservação ambiental indígenas deve respeitar o limite máximo de 30% da área de superfície de cada estado”
  • PEC 237 permite a posse de terras indígenas por parte de produtores rurais;
  • Portaria 419 pretende agilizar o licenciamento de projetos públicos por meio da redução dos direitos dos indígenas, das comunidades tradicionais e do meio ambiente;
  • Portaria 7957 cria a Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública para permitir o uso da força militar contra os povos indígenas que se opõem aos projetos de grande escala do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), especialmente barragens hidrelétricas;
  • PL 1610 permite a mineração em terras indígenas.

OS DIAS QUE CORREM

A Funai sobrevive em uma montanha-russa, tentando ganhar a confiança indígena e ao mesmo tempo lidar com os interesses do governo, além de lutar para manter sua integridade contra uma cultura de corrupção e cortes no orçamento que reduzem consideravelmente o número de empregados.

A ex-presidente da Funai, Maria Augusta Assiratti, comentou abertamente os desafios da organização em palestra organizada este mês em Londres pelo Brazil Institute do King’s College e pela Associação Brasileira de Estudantes de Pós-Graduação e Pesquisadores no Reino Unido (ABEP-UK).

Disse ela: “Durante um ano inteiro na organização, todos os dias, era necessário afirmar que a nossa visão é diferente da política de desenvolvimento unilateral do governo Brasileiro. Esses objetivos [do governo] são contrários a nossa verdade como organização criada para apoiar e proteger os povos indígenas. Hoje, a Funai enfrenta o mesmo dilema de 1967: lidar com as expectativas e demandas indígenas e, ao mesmo tempo, ir contra as decisões do governo”.

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No mesmo evento, estavam presentes Fiona Watson, da Survival International, dois indígenas, Nixiwaka Yawanawá e Takuma Kuikuro, e a fotógrafa Sue Cunningham, que, com o marido Patrick, há 20 anos executa vários projetos no rio Xingu.

A questão da terra é a raiz do desafio dos índios no Brasil e está cientificamente comprovado, por meio de imagens de satélite, que os povos indígenas são os melhores guardiões de nossa floresta. Os índios protegem nossas terras das consequências drásticas da exploração madeireira, da mineração, dos interesses petrolíferos e da criação de gado. Com esses interesses vem o desenvolvimento de usinas hidroelétricas na Amazônia, como é o caso de Belo Monte, que é apenas uma das muitas hidrelétricas planejadas em como Xingu e Tapajós.

Os quase 900 mil índios no Brasil, em suas 304 etnias, de acordo com o IBGE, enfrentam desafios extraordinários para lutar pelos seus direitos, desde suas localizações geográficas até a comunicação entre si. Outra questão difícil é a confiança em organizações e pessoas que oferecem ajuda e também a luta para encontrar uma forma de ajudar, considerando a diversidade dos povos indígenas e suas questões mais urgentes, que são diferentes para cada grupo.

Afirmou Nixiwaka Yawanawá: “Não vamos desaparecer. Enquanto existir um índio, vamos lutar. Hoje, eu uso o conhecimento do que chamamos ‘super brancos’ para ajudar o meu povo”.

 

*Alicia Bastos é fundadora e diretora artística do Braziliarty

 

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