A crise de poder no Brasil

Brasil Observer - abr 11 2016
Brasília - Para evitar confrontos entre manifestantes pró e contra impeachment a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal definiu divisão de espaço na Esplanada dos Ministérios (José Cruz/Agência Brasil)
José Cruz/Agência Brasil

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Milhões de pessoas tem ido às ruas em favor e contra o impedimento da presidenta Dilma Rousseff. Em curto prazo, o cenário é de confrontos, não de negociação

 

Por Silvio Caccia Bava*

Em 2011, o governo brasileiro adotou medidas anticíclicas para enfrentar a desaceleração mundial do crescimento econômico. Seu objetivo foi fortalecer o mercado interno e garantir o valor do salário, o pleno emprego. Acabara o período das vacas gordas e do boom das commodities, o jogo de ganha-ganha em que nenhum setor era punido em benefício de outro.

O governo baixou fortemente a taxa de remuneração dos títulos da divida pública, a Selic; impôs por meio dos bancos públicos uma redução nos juros ao consumidor; congelou preços administrados, ampliou o crédito, impulsionou investimentos públicos etc.

Para além da defesa da renda e do emprego das maiorias, no conjunto, essas iniciativas expressavam uma política nacional desenvolvimentista, com um papel destacado para o Estado e especialmente para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, no fortalecimento de algumas cadeias produtivas estratégicas como as de óleo e gás, petroquímica, construção naval. Uma política contrária aos interesses do sistema financeiro e do capital internacional. Pela primeira vez, o controle da política econômica não coincidia com os interesses do sistema financeiro e das grandes corporações.

As medidas anticíclicas reduziram os ganhos do setor financeiro privado e das grandes corporações, fortaleceram o Estado e colocaram o fator de insegurança para esses empresários. Eles se deram conta de que não controlavam mais as políticas econômicas, e isso foi inaceitável.

Em reação a essas medidas, as elites financeiras conseguiram a adesão de todo o grande empresariado, que, a partir do fim de 2012, unido, passou a se colocar contra o governo Dilma, a apoiar a oposição neoliberal e a buscar desestabilizar o novo governo, mesmo depois de sua vitória eleitoral de 2014.

Com um novo Congresso em que 70% dos parlamentares foram financiados em suas campanhas eleitorais por dez grandes grupos empresariais, está em andamento uma iniciativa parlamentar de tentar promover o impedimento da presidenta.

Os liberais, melhor dizendo, os neoliberais, depois do “ensaio desenvolvimentista” de 2011, querem retomar o controle da política econômica e submeter o Estado a seus interesses privados. Em contraposição a esses interesses ocorrem mobilizações e campanhas populares pela reforma política, por exemplo, que querem um Estado cada vez mais público e orientado para atender aos interesses de todos. Esses termos já expressam a natureza da disputa pela ordem institucional.

O fator crucial foi a organização e a politização de importantes setores sociais oprimidos, que recusaram a postura de submissão que o sistema político lhes destina. No Brasil, a riqueza e a diversidade das organizações da sociedade civil que se constituem para a defesa de direitos fizeram a diferença, mobilizando amplos setores e canalizando sua força política para a construção e eleição do PT.

O fato é que a direita não conseguiu apresentar, no Brasil, um projeto de país para disputar a preferência do eleitor nas eleições de 2014. Os neoliberais perderam, pela quarta vez, as eleições presidenciais. Centraram sua campanha na produção de um terrorismo econômico e na necessidade de evitar uma catástrofe. E atacaram o governo e o PT acusando-os de incompetentes e corruptos.

Na impossibilidade de vencerem pelo voto, as elites no Brasil partiram para o jogo pesado, atacando a democracia com sua tentativa de golpe, comprando o Congresso, mobilizando a mídia para uma enorme campanha, iniciando uma guerra aberta contra o governo e o PT.

A elite brasileira lançou mão do terrorismo econômico, de análises e projeções catastrofistas para a economia brasileira, distorcendo uma realidade na qual os indicadores macroeconômicos não apontavam a necessidade de um ajuste, muito menos que ele se desse com essa radicalidade. Agora a crise é real, o desemprego bate na casa dos 10%, as perspectivas econômicas sombrias. A oposição que quer derrubar o governo apresenta como solução para a crise a mesma política de austeridade que o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu impuseram à Grécia, onde o ajuste levou a uma regressão de 30 anos na questão dos direitos sociais.

O sucesso da mobilização da mídia na guerra contra o governo foi uma demonstração do imenso poder dessas empresas de comunicação. Na guerra da comunicação, “a questão central é a escolha da agenda e dos temas em destaque, o leque de opiniões permitidas, as premissas inquestionáveis que orientam a produção da informação e os comentários, a visão de mundo que estrutura esses argumentos” (Chomsky, Noam; “Necessary Illusions: thought control in democratic societies”; South End Press; Boston; 1989).

Renomados economistas neoliberais brasileiros afirmam publicamente que é preciso promover a recessão e o desemprego para rebaixar o custo do trabalho. É uma declaração de guerra aos trabalhadores.

Com o Congresso controlado pelos grandes empresários e com a deslegitimação do sistema político, aí incluídos os partidos, a democracia brasileira fica em perigo. Grande parte da população não se vê representada em seus interesses, e assim se abre espaço para o surgimento de uma nova onda conservadora e de novas práticas autoritárias na sociedade, como buscar fazer justiça com as próprias mãos e criminalizar os pobres pela violência na sociedade.

As versões da direita monopolizam a mídia conservadora, levando grande parte da população a responsabilizar o governo por uma crise que, na verdade, foi engendrada pelo poder econômico. Seus especialistas em trabalhar com a opinião pública criam as ilusões necessárias: simplificações emocionalmente potentes que atribuem ao governo e ao PT a corrupção, o “desgoverno”, os riscos do desemprego, a inflação, a perda de poder aquisitivo por parte da população. “A mídia não cobre mais os acontecimentos. Ela gera versões e tenta transformá-las em verdade”, alertou o sociólogo Laymert Garcia dos Santos.

 

A CAMPANHA ‘FORA, DILMA’

As denúncias de corrupção, todas elas seletivas, pois ignoram o PSDB e os demais partidos de oposição ao governo, servem para mobilizar a população contra o governo e manipular a opinião pública, especialmente as classes médias que não compreendem por que os bons tempos acabaram.

A crise política se radicaliza; as ofensas pessoais e os panelaços mostram a intransigência dessas classes médias e sua revolta com a crise econômica; abre-se campo para o imprevisível. Nesse cenário, novas ONGs de direita, e partidos que tradicionalmente defendem as elites, buscam mobilizar a opinião pública em manifestações contra o governo e o PT. E parte dos trabalhadores se soma agora à oposição, mas por outros motivos, estão descontentes com o desemprego crescente e com o governo, que reduz as políticas de transferência de renda.

Sem a mobilização da sociedade, os opositores avaliam que “não há clima” para a promoção do impedimento da presidenta. Com um respaldo maior das ruas, como nas manifestações de 13 de março que reuniram 3,6 milhões de pessoas, darão continuidade ao processo de articular o golpe branco, isto é, a condenação do governo e do PT por atos ilícitos que, na verdade, não existem. Amplos setores do Congresso, do Judiciário, da Polícia Federal, tradicionalmente ligados aos interesses das elites, promovem uma ofensiva para derrubar o governo, criminalizar o PT (apenas o PT) e impedir a candidatura de Lula em 2018.

As forças neoliberais formaram um comitê dos partidos que são contra o PT e o governo e pretendem, coordenadamente, convocar seguidas manifestações populares em várias capitais do país.

Como uma reação à iniciativa de promover amplas mobilizações em favor do impeachment da presidenta, as forças democráticas e populares também se mobilizam e, por meio da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo, convocam marchas e mobilizações em apoio ao governo, à democracia, e contra o golpe.

Milhões de pessoas tem ido às ruas em favor e contra o impedimento da Presidenta. Em curto prazo, o cenário é de confrontos, não de negociação. As elites brasileiras, com seus sócios internacionais, se somam à maré conservadora que se abate sobre o continente e jogam seu peso na busca da desestabilização do governo e na queda da presidenta. No Congresso, as bancadas da oposição travam todas as iniciativas de governo e colocam as “pautas-bomba” (votam aumentos no gasto publico sem recursos disponíveis) na estratégia de quanto pior, melhor.

É esse confronto que cria o impasse da atual conjuntura, que agudiza a crise econômica e seus efeitos nefastos sobre a população. Como ele vai se desdobrar não sabemos, mas o que vai acontecer nas ruas, nas próximas semanas, pode indicar para onde os ventos sopram. É bom lembrar que há uma grande maioria que neste momento está silenciosa, mas pode também ir para as ruas, como fez em junho de 2013.

 

  • Silvio Caccia Bava é sociólogo, diretor e editor-chefe do jornal Le Monde Diplomatique Brasil