Lentes em zona de guerra

brasilobserver - fev 16 2015
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Foto: Valnei Nunes

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Repórter cinematográfico Valnei Nunes relembra os dias em que esteve na fronteira da Síria com a Turquia cobrindo os conflitos armados da região e revela: “o envolvimento é inevitável”

Por Rômulo Seitenfus

Parte da maior crise humanitária de nossa era se desenrola entre as cidades de Kobane e Suruç. A primeira, localizada no norte da Síria, na fronteira com a Turquia, tornou-se em setembro do ano passado alvo estratégico do grupo jihadista Estado Islâmico – o que agravou ainda mais a situação na região que já sofria com a guerra civil entre rebeldes e soldados do presidente sírio Bashar Al-Assad, iniciada em 2011. A segunda, do lado turco, é o destino de milhares de refugiados sírios, principalmente curdos – etinia com mais de 30 milhões de pessoas sem Estado próprio que se espalham principalmente por países como Irã, Turquia, Iraque, Síria e Armênia.

Foi naquela zona de guerra que o cinegrafista e fotógrafo brasileiro Valnei Nunes passou cerca de um mês entre setembro e outubro do ano passado, testemunhando a ofensiva do Estado Islâmico, a resistência por parte dos curdos e do exército estadunidense e o consequente deslocamento de milhares de cidadãos em busca de paz. Junto com o repórter Sergio Utsch, produziu uma série de reportagens para SBT, e alguns desses registros – fotografias e filmagens – são apresentados na exposição “Displaced”, na Embaixada do Brasil em Londres, até 6 de março.

A mostra retrata o drama dos refugiados sírios. Segundo a Agência da Onu para Refugiados (Acnur), quase a metade da população da Síria teve que abandonar suas casas por causa da violência e há mais de 3 milhões de pessoas refugiadas em outros países. “O envolvimento é inevitável”, confessou Valnei Nunes em entrevista exclusiva ao Brasil Observer. No momento em que este texto era escrito, as notícias davam conta de que combatentes curdos haviam expulsado os jihadistas da cidade de Kobane. E a exposição, agora, segue para Frankfurt, na Alemanha, com o objetivo de atingir o maior número de pessoas e arrecadar doações para as vítimas da guerra.

Parte da única equipe brasileira de reportagem na região de Kobane, Nunes é formado em Cinema e Vídeo, trabalhou em diversas funções da área, mas esteve sempre ligado aos direitos humanos – retratando questões indígenas e denunciando o tratamento do serviço público de saúde mental, por exemplo. Nesta entrevista, ele conta como foi a cobertura do conflito na fronteira entre Síria e Turquia.

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Em que momento você se deu conta do tamanho do conflito?

Já tinha realizado coberturas internacionais bem difíceis, mas não esperava tamanha gravidade. No quinto dia de cobertura o deslocamento já era considerado a maior tragédia humanitária da história da Acnur (Agência da ONU para Refugiados). A situação só piorava e a jornada estava apenas começando. Só depois fiquei sabendo que fomos os únicos brasileiros nessa zona de guerra.

 

Houve algum impasse durante a cobertura?

Ocorreram muitos impasses. Em volta da cidade de Suruç, os encontros entre a milícia curda e o exército turco eram cada vez mais tensos. Em um dos protestos, estávamos a dois metros da polícia quando, de súbito, o exército turco iniciou um ataque contra todos que estavam em volta. Jornalistas, fotógrafos e a milícia curda se dispersaram pelo efeito do gás lacrimogêneo. Entramos no carro e iniciamos um retorno imediato em direção a Suruç. Durante o percurso a estrada estava bloqueada por tanques e militantes, não podíamos avançar e resolvemos esperar no meio da estrada, num local distante dos conflitos. Tentava filmar de longe um homem rezando no meio dos ataques quando, de repente, ouvi um vácuo e uma explosão atrás de mim; era um morteiro caído há menos de 200 metros do nosso carro – éramos o alvo. Tudo indica ter sido o exército turco, mas a cidade de Kobane e o Estado Islâmico estavam logo ali, todos contra todos, e a ameaça vinha de todos os lados.

Os curdos acusam o Estado turco de financiarem o Estado Islâmico. A Turquia, além de manter preso há mais de 15 anos Abdullah Ocalan, o líder curdo do Partido do Trabalhadores (PKK), considera os curdos uma ameaça territorial. No caminho de volta do primeiro protesto, senti uma dor progressiva no ombro esquerdo. Na manhã seguinte mal segurava a tampa da lente da câmera. Em meu diagnóstico tive ombro esquerdo deslocado. Eu tinha mais oito dias de cobertura, não havia tempo de ir ao hospital. No dia seguinte, fui em um daqueles oráculos milagrosos do Oriente Médio. Era uma velhinha curda que enquanto retorcia o meu corpo, me rezava e beijava; depois colou dois adesivos no meu ombro que ardiam como queimadura na pele. Com o bem sucedido tratamento, melhorei em dois dias. Mesmo com o braço deslocado continuava a filmar e fotografar. Foi bem difícil.

 

Vocês contaram com algum tipo de proteção?

De fato, não. Toda a imprensa internacional  que estava lá se sentiu ameaçada, não havia como saber de onde viria o ataque. Me recordo que até o carro de reportagem da BBC, com uma equipe grande, foi atacado violentamente pelo exército turco. Era uma situação caótica.

 

Como foi lidar com a situação de guerra? Em algum momento você se viu envolvido emocionalmente com os refugiados?

Teve uma criança em especial, de aproximadamente quatro anos, que estava morando dentro de uma das lojas que foram desativadas para abrigar os refugiados. Lembro que tinha uma tangerina no bolso e entreguei ao garoto, que mordia o meu braço enquanto eu descascava a tangerina; ele estava faminto. Passei a apanhar comida do hotel onde eu estava hospedado para levar para as crianças dessa loja. Lembro dos refugiados estarem famintos. A imagem dos refugiados chegando na fronteira era de proporções bíblicas: milhares de pessoas famintas, empoeiradas e desidratadas. Numa das mesquitas que serviam de alojamento para os refugiados, uma adolescente, Muna, que tinha 15 anos, estava com o corpo todo queimado e aguardava a chegada dos remédios havia dez dias.

 

Mesmo em situações tristes, pode haver beleza nas imagens. Quais são suas lembranças fotográficas mais marcantes?

Teve uma ocasião em que fui a uma praça onde o caminhão da Acnur costumava distribuir a única refeição do dia para as famílias. Uma multidão de crianças se espremiam na fila. Entrei no caminhão e, da janela, perto de uma enorme panela de carne, via uma aglomeracão de crianças de todas as idades se empurrando com baldes vazios nas mãos para pegar um lugar melhor na fila. Muitas daquelas crianças precisavam alimentar entre 15 a 20 pessoas por dia. Naquela praça que intitulei de “Jardim dos Refugiados”, por mostrar dezenas de tecidos coloridos de mulheres curdas espalhados entre arbustos, vi uma beleza inesquecível, apesar de toda aquela situação triste.

 

O que o levou a realizar a exposição?

Dois motivos. Primeiro a necessidade de que pessoas de outros lugares conheçam a história do povo mais afetado pela guerra: os curdos. Maior etnia do planeta sem um Estado reconhecido, eles vivem em diferentes regiões do Oriente Médio e, apesar de serem muçulmanos, a mulher é respeitada, o uso do véu não é obrigatório, defendem a democracia e tanto o homem quanto a mulher tem os mesmos direitos. O outro é a necessidade de doações para as famílias que estão em situação de abandono. Lembro que não tinha barraca para todos que chegavam; famílias inteiras dormiam encostadas nos muros dos acampamentos aguardando alojamento. Na exposição, 20% das vendas das obras vão para as famílias dos refugiados.

 

Você pretende continuar cobrindo zonas de conflitos?

Acho que faço um bom trabalho em situações extremas. Enquanto houver conflitos acontecendo, a responsabilidade de um comunicador sempre será a força de expressão necessária para noticiar a realidade compondo uma olhar crítico e despretensioso. Devo voltar aos campos ainda este ano com outro projeto que está em andamento.