Gaël Le Cornec: ‘Não aceitam a força da mulher que denuncia’

Brasil Observer - set 25 2017
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Atriz, escritora e diretora brasileira prepara peça ‘Efêmera’, que estreia em outubro dentro do CASA Festival

 

Por Guilherme Reis

Gaël Le Cornec é uma atriz, escritora e diretora brasileira baseada em Londres. Filha de pai francês e mãe brasileira, nascida em Belém, no Estado do Pará, Gaël mudou-se em 2002 para a capital britânica, onde está preparando mais uma peça, ‘Efêmera’, de 5 a 7 de outubro na Southwark Playhouse, parte do CASA Latin American Theatre Festival.

O espetáculo surgiu de uma parceria do CASA Festival com a Queen Mary’s University London e o People Palace Projects, que estão realizando um estudo sobre violência contra mulheres brasileiras em Londres e no Rio de Janeiro. Com base no depoimento de 30 entrevistadas, Gaël escreveu a peça que apresenta duas mulheres, uma brasileira e uma inglesa, cujas histórias se revelam e se cruzam ao longo do caminho.

Nesta entrevista exclusiva com o Brasil Observer, realizada em um café em South Kensington, Gaël Le Cornec fala sobre sua trajetória, revela detalhes da nova peça e tece suas opiniões sobre a condição da mulher nos dias que correm. “A vida”, como ela própria diz, “é efêmera”.

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Conte um pouco de sua história, como você chegou a Londres?

Vim estudar inglês, cheguei em 2002 falando três palavras. Era pra eu ficar de seis meses a um ano, mas acabei ficando. Sou de Belém do Pará, mas morei em São Paulo, onde me formei em Biologia. Vim pra cá na verdade porque eu queria fazer um mestrado e precisava do inglês.

Meu pai é francês e minha mãe brasileira. Moram no Brasil até hoje, em Macapá. Passei um tempo na França com meus avós, na época da escola.

Quando cheguei a Londres queria fazer zooarqueologia, um curso de especialização. Mas, no Brasil, eu já trabalhava na área com mais de cem espécies em laboratório, aqui tinham só três, então fiquei entediada, tive uma crise e larguei. Foi quando me envolvi com teatro pra aperfeiçoar o inglês. Tinha feito teatro em Belém, onde cheguei a me apresentar no Teatro Margarida Schivasappa com 10-12 anos. Fui fazendo e não parei. Na verdade era algo que eu sempre quis, desde criança.

 

Qual é sua relação com o Brasil e como isso afeta seu trabalho?

Tenho uma relação muito forte com o Brasil, ainda mais forte com a Amazônia. Meu trabalho é bem influenciado por uma coisa mais ritualística. Até queria explorar mais isso. Eu sou, e todos brasileiros somos, uma mistura de várias identidades culturais. E me orgulho disso, sinto essas influências todas. Eu acompanho o que acontece no Brasil e a gente se sente muito envolvido. Meu pai saiu com 18 anos da França e passou pelos Estados Unidos e pelo Caribe antes de chegar à Amazônia, que sempre foi o sonho dele. Ele foi sempre um exilado. E eu agora sou uma exilada aqui, como ele. Quando fui pesquisar minha ancestralidade, eu descobri que sou tão misturada que meus ancestrais todos devem ter feito isso, ido para outros lugares. Interessantemente, meu trabalho reflete muito isso. É sempre sobre exílio, identidade, sobre estar distante de casa e procurar conexões entre as pessoas, conexões culturais e transculturais. É uma coisa que acontece naturalmente, está em mim.

 

Você acha que o artista brasileiro, ou de outra nacionalidade, que mora fora carrega certa obrigação com seu país de origem?

Não necessariamente, mas acho importante. Não necessariamente porque a arte é livre, você pode falar sobre o que você quiser. Tem gente que não quer se encaixar dentro de uma coisa só. É importante expandir. Eu sinto que estou explorando muito mais temas brasileiros agora do que quando eu comecei, talvez por uma vontade de me conectar mais aos temas, por estar tanto tempo fora. A peça ‘Efêmera’ é um pouco isso. A pesquisa da Queen Mary com mulheres brasileiras em Londres descobriu que muitas já sofreram violência doméstica, então quero entender por que isso acontece. Ainda não entendemos direito por que está crescendo esse número de mulheres que chegam às organizações de apoio relatando casos de violência doméstica. Talvez antes as mulheres não tivessem coragem de falar. Esse projeto me fez reencontrar meus fantasmas, olhar pro meu passado e ver, no dia a dia, quanto você passa por ser mulher. Como você se organiza e sobrevive no sistema patriarcal.

 

Sobre essa nova peça, como está sendo seu desenvolvimento?

A gente começou a conversar em janeiro sobre a peça e vamos começar a ensaiar em setembro. A ideia é se basear nas entrevistas da pesquisa conduzida pela Queen Mary. Mas, é claro, preciso tomar decisões artísticas, então resolvi, em vez de contar a história de 30 mulheres, misturar todas em uma só. E por conta do Brexit, de todas essas tensões culturais, também quero contar a história de uma inglesa, pra falar que violência contra a mulher não acontece só no Brasil. Não quero que o público venha e pense “nossa que terrível o que está acontecendo na comunidade brasileira”, pois não é assim. Então resolvi contar a história de uma inglesa também, e as duas histórias vão se encaixando.

 

Por que o título ‘Efêmera’?

Acho que carrega ‘feme’, que remete ao que é feminino, à mulher, e acho que a mulher se encaixa no tema da efemeridade. Tem uma coisa muito feminina nessa palavra. E a palavra efêmera carrega poesia também.

 

É um tema de extrema relevância não só no Brasil, como você disse. Como você enxerga isso e a luta feminista?

A mulher nos últimos cem anos assumiu uma posição que nunca tínhamos assumido antes. Estamos vivendo um tempo de certa forma mais igualitário em relação aos gêneros, mas ainda assim os índices de violência contra a mulher estão aumentando. Por que isso está acontecendo? É uma questão que eu tenho, tanto em relação ao Brasil quanto em relação à Inglaterra. Morrem 15 mulheres por dia no Brasil vítimas de violência. E mais de um milhão de casos de violência contra a mulher foram registrados na Inglaterra no ano passado.

Na pesquisa da Queen Mary, aliás, algumas mulheres contam que existe uma questão de estereótipo por parte da polícia britânica, de achar que as mulheres brasileiras são muito passionais, muito emotivas e estão exagerando. Temos que quebrar isso, violência é violência. Também tem a noção de que se você é vítima, você tem que se comportar como vítima. Não aceitam a força da mulher que denuncia um abuso.

Vejo que fui vítima de vários casos quando olho pro meu passado. E é exatamente esse o tema da peça ‘Efêmera’. Uma hora uma dessas mulheres olha pra trás e vê tudo que aconteceu com ela, vê como ela não enxergou que aquilo era abuso. Você está tão acostumado que você acaba aceitando. Não é pra aceitar.