A sociedade brasileira se mostra anestesiada, à espera de atos que a ajudem a se reposicionar e, eventualmente, a se repactuar com a política e os políticos
Por Marco Aurélio Nogueira
Depois de ter encontrado seu ápice nos dias que antecederam à decisão do Senado de afastar preliminarmente Dilma Rousseff, em 12 de maio, o movimento “contra o golpe” perdeu força. Hoje é mantido por conveniência. Buscou-se reforçá-lo com os slogans “Fora, Temer” e “não reconheço governo golpista” com o objetivo de ferir e deslegitimar o governo interino, mas nada foi capaz de animar o debate público ou a vida política. O movimento não se apoiou em análises realistas e banalizou a ideia de “golpe”, deixando-se esvaziar de sentido. Seus slogans passaram a servir tão somente como música de fundo para alguns atos de protesto e certas assembleias de reivindicação.
Aos poucos, a opinião pública brasileira, os políticos do país e mesmo os partidos que sustentaram o governo Dilma Rousseff – a começar do PT, partido pelo qual se elegeu – foram se curvando às circunstâncias e aos dados duros da política, que estão a dar outro rumo e perspectiva para a governabilidade democrática e a institucionalidade política do país.
Depois de um início claudicante, em que mostrou pouca habilidade e compôs um ministério inexpressivo, repleto de suspeitos de corrupção e de acusados de obstrução da Justiça, o governo interino de Michel Temer conseguiu alcançar um mínimo de estabilidade. A melhoria de sua posição foi consolidada no dia 14 de julho, com a eleição do novo presidente da Câmara dos Deputados. Eleito com boa maioria, o deputado de centro-direita Rodrigo Maia (DEM-RJ) não só substituiu o afastado Eduardo Cunha (envolvido em inúmeros processos de corrupção) como submeteu os parlamentares fisiológicos (que integram um bloco independente junto com trânsfugas dos partidos maiores) a uma nova dinâmica parlamentar, na qual sobressaem os partidos que faziam oposição ao governo Dilma (PSDB, DEM, PPS, PSB), juntamente com o PMDB, partido de Temer.
A eleição na Câmara também ressaltou as dificuldades operacionais e os erros de condução política do PT e dos demais partidos de esquerda, que não só foram derrotados como ficaram em posição subalterna, sem opinião e sem um projeto político que funcionasse como guia. Tudo somado, o governo interino ganhou uma mais consistente base de apoio.
A batalha em torno do impedimento de Dilma Rousseff não está, evidentemente, encerrada. Espera-se que até o final do mês de agosto seu afastamento será votado pelo Senado, em caráter terminativo. Ainda que a hipótese de uma absolvição de Dilma não deva ser descartada, os cálculos políticos atuais dão como praticamente certa a aprovação de seu afastamento. A própria opinião pública demonstra estar, hoje, convencida de que a troca presidencial representa o início de uma nova fase no país.
Segundo dados do Datafolha, 50% dos brasileiros avaliam que seria melhor para o país que o peemedebista Temer continuasse no cargo até 2018, ao passo que 32% acham melhor que Dilma retorne ao Palácio do Planalto. A gestão de Temer não foi bem avaliada, depois de dois meses no cargo, mas sua reprovação é inferior à que Dilma obtivera antes de ser afastada. A pesquisa mostra também que o afastamento definitivo de Dilma é defendido por 58% dos brasileiros, e 35% se opõem à saída. Independentemente da posição sobre o assunto, 71% acreditam que Dilma será afastada em definitivo, contra 22% que acham que ela será reconduzida. Outras pesquisas revelaram um dado ainda mais importante: os brasileiros, em sua maioria, acham que seria melhor a realização de uma nova eleição para a Presidência, o que, na prática, indica que são favoráveis tanto à cassação de Dilma quanto de Temer.
A normalidade e a rotina parecem, assim, estar voltando a Brasília, mas o novo governo abre caminho em meio a muitos obstáculos e dificuldades.
É uma volta à normalidade marcada pela frieza, sem espaço para manifestações de euforia ou declarações de apoio. A sociedade se mostra anestesiada, à espera de atos que a ajudem a se reposicionar e, eventualmente, a se repactuar com a política e os políticos. Os cidadãos olham para o Planalto – o Executivo e o Legislativo – com tédio, decepção e desdém. Não há motivos para comemoração: a democracia funciona, seus ritos e instituições têm sido respeitados, mas o sistema não se mostra ágil o suficiente para responder às demandas da sociedade.
O governo interino mantém o foco concentrado na formação de uma ampla base parlamentar e na recuperação da economia, valendo-se enfaticamente da ideia de trazer de volta a “confiança”, tanto entre os políticos quanto entre os agentes econômicos, sem deixar de considerar também a opinião pública. Acredita que, com tal procedimento, terá como obter a aprovação do impedimento definitivo de Dilma e, a partir de então, reorganizar seus apoios, seu ministério e suas políticas.
Se o plano dará certo é uma incógnita. O governo continua com muitas arestas e perfil mal definido: ainda não se “arredondou” e pode ser que jamais consiga se tornar um todo harmonioso. Se passar pela prova final do impedimento, é bem provável que continue a flutuar como um polígono convexo irregular, impelido por uma base instável, por ministros inexpressivos, pela dificuldade de coordenar uma sociedade sem eixo, pela carência de líderes e articuladores competentes no Congresso, pelas pressões do fisiologismo político. A prática política tradicional está sob fogo cruzado: deslegitimada pela sociedade e combatida pela Operação Lava Jato. As investigações em curso mantêm os políticos em estado de suspense, ameaçam a situação e a oposição. São uma variável independente que não tem como ser politicamente controlada.
A própria recuperação da economia – com a volta de melhores indicadores de emprego, a redução da inflação e dos juros, a amenização da crise fiscal e o retorno do crescimento – não é líquida e certa, até porque sempre dependerá do que ocorrer no cenário internacional. O governo interino organizou uma equipe econômica sintonizada com o mercado, mas as reformas e os ajustes por ela concebidos para superar a crise precisam ser discutidos e aprovados no âmbito político.
Há, além disso, a situação geral do país, suas desigualdades sociais extremas, seus sistemas públicos e suas políticas pouco eficazes, particularmente no terreno da educação, da saúde e da habitação, seus déficits em termos de infraestrutura e de produtividade. Tudo isso retira competividade da economia, encarece os custos de produção e deixa a população sem as devidas proteções sociais e sem serviços básicos.
A favor do novo governo estão o tamanho do mercado interno e a força da economia brasileira, o peso estratégico do país no mundo e a disposição ao sacrifício da população, que se reproduz sem que se supere o quadro de desarticulação e passividade das grandes maiorias. A própria crise política poderá contribuir para a ação governamental, na medida em que vier a facilitar que o governo cresça por meio de negociações seletivas, privilegiando ora uns, ora outros dos mais de 30 partidos políticos, sem ser hostilizado pela oposição, hoje desestruturada.
Essas, porém, são vantagens relativas. A disjunção entre Estado e sociedade jamais favorecerá a democracia, especialmente se se reproduzir no longo prazo. Cabeça e corpo da nação precisarão sempre se retroalimentar. Se, no momento atual, há um novo clima político no Brasil, o ponto que se projeta como desafio principal é a de saber de que modo o país chegará às próximas eleições presidenciais, no final de 2018.
Haverá algum movimento virtuoso para reformar a prática e a cultura dos políticos e de seus partidos, ajudando ao mesmo tempo a que se reduzam a fragmentação parlamentar, o fisiologismo, o alto custo das campanhas eleitorais, o afastamento dos cidadãos do círculo de tomada de decisões? Que novidade efetiva virá com o novo governo? Ele trará consigo melhores procedimentos governamentais, uma estrutura administrativa mais eficiente, novos hábitos e mentalidades, que auxiliem a que se racionalize e se aperfeiçoe a atuação do Estado, não em sentido neoliberal, ou seja, mediante cortes que façam sangrar programas e políticas sociais, mas sim mediante a eliminação de desperdícios, de gastos suntuosos, de privilégios e concessões aos que já são socialmente privilegiados? A democracia voltará a conhecer ímpeto mais substantivo e melhor qualidade, de modo a que se valorizem a atividade política e o debate público entre as diferentes correntes de opinião? Nenhuma dessas questões pode ser hoje categoricamente respondida.
Um pequeno, mas importantíssimo teste terá lugar com as eleições municipais que ocorrerão em outubro. Nelas, todos os principais partidos disputarão o voto dos eleitores e mostrarão, ou não, sua real capacidade de renovação. Os candidatos terão de se adaptar às novas regras eleitorais, que restringem o financiamento das campanhas e encurtam o período das propagandas de rádio e televisão. A própria população demonstrará sua disposição para respaldar novas propostas e examinar com olhos mais críticos os compromissos dos diferentes candidatos.
O Brasil atual é uma sociedade que não tem como conviver com governos favoráveis unilateralmente ao mercado ou que se dediquem a praticar políticas que não se voltem para uma melhor distribuição da renda, da justiça e das oportunidades. O país pede por renovação nas práticas políticas e nas orientações governamentais. Poderá continuar a aceitar que isso não venha no curto prazo, mas não se mostra disposto a esperar tempo excessivo. Sociedades dinâmicas, heterogêneas, repletas de carecimentos e desejosas de direitos igualitários, como o Brasil, não costumam ser tolerantes ou proceder de forma sempre racional.
Das várias questões que não podem ser categoricamente respondidas hoje, uma se destaca: que caminho seguirão os partidos para administrar os efeitos das investigações e recuperar os vínculos com as forças vivas da nação? Quem sobreviverá para bloquear os germes da “antipolítica” que ameaçam a população? Qual esquerda emergirá da crise do PT?
Até o momento, o partido que governou o país nos últimos 13 anos em nome de um programa de reforma social não se mostrou disposto a fazer a avaliação crítica de seu desempenho. Salvo algumas vozes isoladas (como a do ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro), o PT continua paralisado, vendo-se como vítima de golpes e artimanhas de elites egoístas e da “mídia oligopolizada”, sem empreender qualquer esforço para olhar dentro de si, analisar a sociedade e o Estado que se constituíram no Brasil e, a partir daí, elaborar um novo projeto político.
A paralisia da esquerda despoja a democracia brasileira de um protagonista que poderia fazer a diferença. E deixa o governo interino – assim como o governo que se definir depois que o impedimento de Dilma for votado – sem um contraponto precioso, que seria indispensável para o país chegar mais forte a 2018 e ir além. O jogo está aberto, pronto para ser disputado por quem se mostrar qualificado teórica e politicamente.
- Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Este artigo foi publicado originalmente em www.opendemocracy.net, e editado pelo Brasil Observer.