O jogo do impeachment

Brasil Observer - mai 10 2016
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O pecado mora ao lado: Dilma Rousseff recebe a faixa presidencial na cerimônia de posse do segundo mandato, no dia 1º de janeiro de 2015; ao lado, o vice-presidente Michel Temer e sua esposa (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

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Por que a presidente Dilma perdeu todo seu apoio político e agora está sendo removida do cargo?

 

Por James N. Green e Renan Quinalha*

Uma presidente eleita por 54 milhões de brasileiros, contra quem não pesa nenhuma acusação de corrupção, tornou-se alvo de processo de impeachment. As principais razões para seu julgamento são a abertura de créditos suplementares ao orçamento por decreto e os atrasos nos repasses federais a bancos públicos para manter programas sociais, um procedimento conhecido como pedaladas fiscais. Os maiores conglomerados de mídia do país têm apoiado incansavelmente a saída de Dilma Rousseff do cargo. Grandes interesses corporativos têm patrocinado manifestações contra o governo, agravando a crise política, em um esforço para transformar o impeachment em fato consumado.

Ironicamente, Eduardo Cunha, o presidente da Câmara dos Deputados que deu abertura aos procedimentos de impedimento da presidente Dilma, está sendo acusado de corrupção e lavagem de dinheiro (ele foi afastado do cargo). Caso seja condenado, pode receber pena de 180 anos de prisão. Recentemente, novas acusações foram levantadas contra ele. Cunha usou seu poder para obstruir investigações contra ele, incluindo a manipulação do Comitê de Ética da Câmara. Após mais de quatro meses, o Supremo Tribunal Federal ainda não havia se posicionado sobre o pedido de afastamento de Cunha da presidência da Casa, nem o Comitê de Ética o julgou depois de considerar o caso por quase seis meses. Apesar de tudo isso, Cunha deu andamento ao processo de impeachment na Câmara em tempo recorde.

O vice-presidente Michel Temer, do mesmo partido de Cunha, está abertamente organizando um novo governo, mesmo antes de o impedimento de Dilma ser concretizado. Ele já divulgou nomes de futuros ministros e sugeriu projetos de governo com a participação de grupos de oposição derrotados na eleição de 2014. Dada a natureza dos governos de coalizão no Brasil, o vice-presidente é eleito junto ao presidente de acordo com o programa apresentado pelo líder da chapa. O vice-presidente não concorre com programa próprio. No entanto, em vez de colocar em prática o programa defendido em 2014, que foi registrado no Superior Tribunal Eleitoral, Temer pretende estabelecer uma nova agenda programática que prioriza as demandas dos setores mais conservadores da sociedade brasileira. Tais demandas incluem a redução das despesas obrigatórias com programas sociais e educação, o uso de forças militares em conflitos rurais, o abrandamento do controle de armas, a aprovação de um estatuto da família conservador e outros projetos previamente engavetados por conta de oposição popular.

Muitos observadores consideram que essas medidas constituem um golpe parlamentar contra um governo que perdeu a maioria no Congresso, enfrenta uma crise econômica e é muito impopular. O segundo mandato da presidente Dilma parece já ter acabado.

Infelizmente, o que menos importa na discussão do impeachment hoje é a lei. Impeachment é um julgamento político, não há dúvida quanto a isso, mas há um aspecto legal a ser considerado que está sendo deixado para trás. Isso ficou claro no relatório apresentado na Câmara e nas justificativas pífias dos votos dos deputados algumas semanas atrás. Apesar de a acusação ser pela prática de pedaladas fiscais, os opositores de Dilma focaram na corrupção e na crise econômica. A base legal para o impedimento da presidente se tornou aspecto secundário diante do conflito político que produziu a crise atual.

Por que a presidente Dilma Rousseff perdeu todo seu apoio político e está sendo removida do cargo por meio de um impeachment conduzido por antigos aliados se ela tinha 59% de aprovação no primeiro mandato, índice maior até do que o de seu predecessor, Luiz Inácio Lula da Silva?

No modelo brasileiro de presidencialismo de coalizão, com mais de 30 partidos políticos, o partido que elege o presidente geralmente não tem maioria no Congresso para governar sozinho. Para aprovar medidas legislativas, precisa estabelecer acordos com outras legendas. O PT não escapou dessa regra. Quando Lula chegou ao poder, em 2003, teve que negociar o apoio de uma série de partidos pequenos. Isso levou ao escândalo conhecido como mensalão. Para manter o apoio no Congresso, o PT então decidiu formar uma aliança mais permanente com o PMDB, que indicou Michel Temer como vice-presidente na eleição de 2010.

Logo após tomar posse em 2011, Dilma começou seu primeiro mandato com uma faxina, após revelações de que membros de seu governo de coalizão estavam envolvidos em corrupção. Ela depôs o conselho de Furnas, uma empresa de energia controlada pelo governo, e desmantelou um esquema de corrupção dentro do Ministério do Transporte. Em poucos meses, sete ministros foram demitidos por conta de acusações de corrupção, sendo a maioria de partidos aliados.

Paralelamente, o governo Dilma encorajou a criação de novos partidos pequenos e fomentou a divisão interna do PMDB para preservar a hegemonia do PT no Congresso. Em 2011, por exemplo, ajudou na criação do PSD, liderado por Gilberto Kassab, e em 2013 apoiou a criação do PROS, de Cid Gomes. Embora Dilma tenha removido o senador Romero Jucá da liderança do governo em 2012, ela não conseguiu derrotar Renan Calheiros e Eduardo Cunha na disputa pelas presidências do Senado e da Câmara dos Deputados, respectivamente.

O estilo firme de governar de Dilma não se baseou no diálogo com os parceiros de coalizão. Isso, somado a uma tendência de governar por decreto, aumentou o descontentamento entre membros do Congresso. Estes demandaram mais posições no governo e verbas em troca de fidelidade. O vice-presidente Temer inclusive se tornou responsável pela coordenação política do governo.

O momento crucial que levou a presidente a cair em desgraça, porém, não foi a eleição de 2014. Foram os protestos de junho de 2013. Começando com uma agenda contra o aumento das tarifas de ônibus e por melhores condições do transporte público, as manifestações se ampliaram e passaram a demandar direitos sociais, menos corrupção e mais participação política. Mais do que insatisfação contra o governo ou contra o PT, as mobilizações se deram contra o sistema político como um todo e a falta de representação sentida por diferentes setores da sociedade brasileira. O governo não soube como reagir apropriadamente e falhou ao não tirar vantagem da situação e iniciar reformas políticas. Após anunciar medidas tímidas, Dilma passou a se render ainda mais às pressões do PMDB e a diminuir os protestos de junho de 2013 como movimentos “conservadores”.

Na eleição de 2014, os sentimentos do ano anterior reapareceram. A campanha de Dilma tentou responder a essas demandas e alcançou uma vitória apertada precisamente por incorporar esses itens no programa de governo. Após ser reeleita, porém, falhou em cumprir suas promessas.

A oposição questionou os resultados da eleição e, sem sucesso, pediu a recontagem de votos. Em seguida, uma queda brusca nos preços das commodities e o aumento das tarifas de eletricidade e gasolina fizeram crescer o descontentamento popular. A crise econômica piorou com o declínio do PIB, o aumento da inflação e a subida do desemprego. Um ajuste fiscal conservador exacerbou a situação. Investigações sobre um esquema de doleiros em Curitiba expôs um sistema corrupto de financiamento de campanhas eleitorais por meio da Petrobras. A operação Lava Jato tomou um claro viés antigoverno com uma série de excessos e procedimentos arbitrários que colocaram a justiça e a lei em perigo.

No dia 8 de março de 2015, enquanto Dilma falava na televisão em rede nacional, manifestantes bateram panelas no primeiro panelaço. No dia 18 do mesmo mês, ocorreu a primeira mobilização de massa contra o governo, cujo índice de desaprovação chegou aos 62%. Desde então, outros panelaços e manifestações aconteceram. A opinião pública, promovida pela mídia, por setores do empresariado e por vazamentos seletivos sobre casos de corrupção, passou a ver o impeachment de Dilma como solução mágica para a crise.

Sob pressão dos conservadores, Dilma continuou dando ainda mais espaço ao PMDB com sucessivas reformas ministeriais. Isso imobilizou o governo e sua popularidade despencou. O efeito colateral desse rearranjo, que à primeira vista parecia evitar o risco de impeachment, foi claro: o governo ficou refém das forças conservadoras. Tornou-se incapaz de engajar e mobilizar a base social que o elegeu e entregar as promessas de campanha. Apesar de seguir as regras do jogo, Dilma e o PT não podiam mais sustentar o poder. Sem conseguir dialogar e negociar com aliados, e incapaz de abandonar as velhas práticas de clientelismo, a crise do governo se aprofundou ainda mais.

Está claro que o Lulismo, conceito criado pelo cientista político André Singer, chegou ao fim. De acordo com Singer, Lulismo é um projeto político de caráter reformista que foi bem sucedido graças em boa parte ao boom das commodities. Os elevados preços das matérias primas possibilitaram que programas sociais fossem criados, redistribuindo modestamente a renda nacional. Políticas progressistas foram aprovadas, mas através das piores práticas do jogo político, com as quais Lula neutralizou muitos conflitos. Quando, em junho de 2013, as mobilizações desafiaram o sistema político, o governo preferiu se preservar reafirmando as práticas de sempre.

De muitas maneiras, a crise do governo Dilma é consequência de uma crise mais ampla do sistema de democracia representativa do Brasil, incapaz de responder às demandas da sociedade por mais direitos e participação política. O sistema brasileiro atual depende de abordagens conservadoras de governança, geralmente através de maiorias na Câmara e no Senado, e por meio de acordos escusos em troca de apoios.

Dessa forma, não é à toa que a população esteja cansada dos políticos e descrente em relação às instituições políticas. De acordo com uma pesquisa do Datafolha realizada em março de 2016, o mesmo percentual da população apoia tanto o impeachment de Dilma quanto de Temer: 60%. A população também não confia no Congresso. Está claro, portanto, que o impeachment não vai solucionar os problemas da atual crise brasileira. Vai apenas repetir uma velha tradição de golpes e rupturas institucionais contra a democracia e o império da lei.

 

  • James N. Green é professor de História e Cultura Brasileira na Brown University e diretor da Brazil Initiative. Renan Quinalha é candidato a doutorado em Relações Internacionais na USP e possui graduação e mestrado em Direito pela mesma universidade.