Editorial: O dia seguinte

Brasil Observer - abr 15 2016
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O brasileiro é um sujeito orgulhoso até de seus defeitos. Não raro parece se vangloriar da complexidade de seu país. “O Brasil não é para principiantes”, adora repetir parafraseando um de seus mais ilustres conterrâneos, o maestro Antônio Carlos Jobim. Está sempre disposto a pregar a inviabilidade de sua nação, fadada a sucumbir ao mormaço tropical, ao caminho mais fácil ainda que errado, ao passa moleque deseducador, ao jeitinho constrangedor. Mas não aceitamos opinião de gringo, que afinal nada entende disso aqui, da nossa peculiar miséria.

Para entender o que se passa hoje no país e como será o dia seguinte de nossa história é preciso respirar fundo para não perder o fio da meada. E uma dose cavalar de desassombro – pois se trata de tragédia espetacular.

A encruzilhada atual se dá na junção de uma crise econômica sem precedentes e um sistema político falido, elaborado de modo a perpetuar a secular divisão entre comandantes e comandados, a satisfazer os donos do poder em todas as esferas nacionais, públicas e privadas. Não é necessária profunda análise para identificar as estruturas intactas de casa-grande e senzala, ou de sobrados e mocambos, ou de condomínios e favelas. Cento e tantos anos de independência ainda não foram suficientes para enterrar trezentos e tantos anos de uma colonização violenta, exploradora e vergonhosamente escravocrata. Trinta e poucos anos de uma jovem democracia ainda não foram suficientes para enterrar vinte e poucos de uma ditadura que serviu àqueles que hoje, em nome da moral e dos bons costumes, invocam o impeachment da presidente eleita, Dilma Rousseff, que, aliás, desceu às masmorras do regime civil-militar.

Mas voltemos ao hoje. A crise econômica atual, para começar, é resultado de fatores internacionais (queda da demanda chinesa, fim do “boom” das commodities, diminuição do preço do petróleo etc.) e nacionais (escalada da dívida pública, desequilíbrio fiscal, falta de investimentos, colapso da arrecadação de impostos etc.). Nos anos de bonança, os governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff fizeram o suficiente para aquecer a demanda interna e impulsionar o consumo (Bolsa Família, valorização do salário mínimo, facilitação do crédito etc.) e o insuficiente para que o crescimento econômico com diminuição das desigualdades fosse sustentável em longo prazo (reforma tributária, diversificação das exportações, aumento da produtividade industrial etc.). Avançamos, afinal, graças a políticas setoriais específicas e a condições externas favoráveis – e não por conta de mudanças estruturais profundas.

Não foi pouco, diga-se. O mundo testemunhou e aplaudiu a ascensão social de mais de 30 milhões de brasileiros; a quase erradicação da miséria; a saída do país do mapa da fome; a ampliação sem igual do acesso ao ensino (do fundamental ao superior); o “empoderamento” das camadas populares. Tudo isso aliado a uma nova e independente atuação do Brasil no cenário internacional. Lula se tornou “o cara” do presidente estadunidense Barack Obama; o Cristo Redentor decolou na capa da The Economist. Até os liberais se renderam à democracia social encabeçada pelo PT, à frente de uma ampla e sólida base progressista e de esquerda.

O que deu errado? Uma vez no poder, é sabido, o PT se portou como os demais. Lambuzou-se na rota da corrupção em nome de um projeto de poder. Optou por uma falsa conciliação de classes em vez de politizar sua base entorpecida por avanços superficiais. Aliou-se às correntes mais retrógradas da nação em troca de apoio evidentemente oportunista (veja o recente “desembarque” do PMDB do governo…). Relegou questões fundamentais para a inauguração de um novo ciclo de desenvolvimento para garantir vitórias eleitorais cada vez mais magras, mais publicitárias. Traiu, afinal, quem no partido depositou suas esperanças – e votos.

Chega a ser cômico ver políticos governistas reclamarem do tratamento recebido pela mídia nativa, por exemplo. Quando pôde, os governos petistas preferiram não tocar no assunto da democratização dos meios de comunicação – essencial em qualquer país minimamente civilizado. Irrigaram, ano após ano, a chamada grande mídia com dinheiro público através de anúncios de empresas estatais – em vez de apostar na pluralidade narrativa, na diversificação das vozes no debate público.

Não nos enganemos, porém. Desde sempre o PT sofre com o que podemos chamar sem medo de ódio de classe por parte das elites nacionais – representadas pela grande mídia, porta-voz da casa-grande também desde sempre. É fundamental, para entender o momento atual, levar em conta a atuação dos meios de comunicação hegemônicos em consonância com a elite financeira – e setores do judiciário, formando uma trinca policial-financeiro-midiática. E entender o ressentimento alimentado por uma classe dominante que nunca aceitou de bom grado a ascensão e o protagonismo das camadas populares. São apenas fatos.

Por outro lado, novamente, não é o caso de entender o PT e seus governos como meras vítimas. Lula sempre se vangloriou por ter sido o presidente que fez os bancos e os empresários lucrarem como nunca – ou seria sempre? Faria sentido se os ganhos graúdos do capital tivessem sido mais bem democratizados, fomentado os investimentos produtivos e não especulativos. Não foi o que ocorreu. “Campeões nacionais” foram eleitos e tocaram um capitalismo à brasileira que não respeita o meio ambiente, muito menos as regras elementares das competições justas, cometendo toda sorte de ilícitos em troca de dinheiro e fama. Do sucesso à lama.

Aqui chegamos à operação Lava Jato, a desnudar as relações promíscuas entre empresários e políticos dos mais altos escalões da República e de todos os naipes. E ao ponto crucial da falência do sistema político: que chance tem de prevalecer o desejo popular em um Congresso onde 70% de seus representantes foram eleitos com o dinheiro de dez empresas? A quem esses parlamentares respondem, ao eleitor ou ao doador de campanha? Não é a toa que quase metade dos parlamentares brasileiros está envolvida em casos de corrupção. Não é a toa que se diga que o sistema financeiro tem papel crucial na encruzilhada política em que o país se encontra. O conceito básico de “uma pessoa, um voto” está completamente deturpado e a democracia brasileira, aos cacos.

O que fazer? Parte considerável da população, principalmente as camadas mais ricas (mas não apenas, é verdade), crê que a solução passa pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff – o que pode acontecer em breve. Creem esses que o PT é o principal responsável pela crise nacional e deve ser punido exemplarmente, inclusive com a prisão de Lula. Para atender a essa demanda, articulam-se o PMDB do vice-presidente Michel Temer e os principais líderes do PSDB, Aécio Neves e José Serra à frente. Além desses, apoiam essa solução parte considerável do empresariado nacional (representado principalmente pela Fiesp, que faz campanha desavergonhada pelo impeachment) e os grandes meios de comunicação, por mais que estes se escondam na falsa cortina da imparcialidade.

Esse novo bloco de poder em formação pouco tem a ver com a fumaça anticorrupção que emana da mídia hegemônica e, consequentemente, dos protestos a favor do impeachment. PMDB e PSDB também estão envolvidos até o pescoço em escândalos que, diferentemente daqueles protagonizados pelo PT, recebem menos atenção da mídia “isenta”. O que querem? Basicamente colocar em prática o projeto de “modernização” do Brasil derrotado nas últimas quatro eleições presidenciais, de caráter liberal-conservador: reforma da previdência social; flexibilização das leis trabalhistas; alteração das regras de exploração do petróleo da camada pré-sal; autonomia do Banco Central; ajuste fiscal para produção de superávits primários robustos; adequação aos ditames do Fundo Monetário Internacional; alinhamento à política externa dos Estados Unidos; distanciamento dos chamados governos progressistas da América Latina; acordos de livre comércio aos moldes dos realizados pela Aliança do Pacífico; supressão dos movimentos sociais, especialmente aqueles ligados ao direito à terra (MST) e à moradia (MTST); diminuição do papel do Estado como indutor do crescimento econômico; nova rodada de privatizações dos bens públicos; reforma política em busca de algo que se assemelhe ao voto distrital; vitória na eleição presidencial em 2018.

O que oferece o PT em resposta? Muito pouco. Após a vitória nas urnas de Dilma Rousseff em 2014, estava claro que o governo precisaria fazer uma escolha: aprofundar as conquistas do campo progressista pelo embate político com as forças conservadoras ou sucumbir às leis do mercado para agradar aqueles que não depositaram seu voto no PT. Optou-se pela segunda saída – algo que, é verdade, vem sendo feito desde o primeiro mandato de Lula “paz e amor”. Ao fazer isso, ao adotar o discurso que havia combatido na campanha eleitoral, a presidente Dilma perdeu seu capital político. Enfraqueceu-se diante dos adversários, que passaram a confabular processo de impeachment aberta e diariamente, e diante de sua base social, cansada de esperar pela anedótica “guinada à esquerda”.

Mas há um problema básico: impeachment não é solução para governo ruim. Previsto na Constituição de 1988, o procedimento é resultado de duas variáveis, uma política e outra, essencial, jurídica. Não faltam motivos políticos para tirar Dilma Rousseff do poder. Falta, porém, prova de crime cabal. Não há base jurídica para o pedido de impedimento por conta das chamadas “pedaladas fiscais”, procedimento financeiro adotado em larga escala por prefeituras e governos estaduais em todo o Brasil, inclusive pelos ex-presidentes Lula e Fernando Henrique Cardoso. Já o pedido de impeachment baseado na suposta obstrução da justiça cometida por Dilma Rousseff segundo delação premiada do senador encarcerado Delcídio do Amaral – fortalecido pela indicação de Lula à Casa Civil – não encontra provas suficientes para ser irrefutável.

Contra Dilma Rousseff não pesa nenhuma acusação formal por conduta ilegal no cargo de Presidente da República. O mesmo não pode ser dito a respeito de duas figuras centrais da política nacional, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, Eduardo Cunha e Renan Calheiros, ambos do PMDB, partido mais interessado no impeachment da presidente. Aécio Neves, presidente do PSDB e candidato à presidência na última eleição, já foi citado em pelo menos seis delações premiadas no âmbito da Lava Jato. Mais da metade da comissão criada no Congresso para julgar o impeachment está sendo investigada pela justiça.

É por isso que partidários do governo de Dilma Rousseff e defensores da democracia não necessariamente alinhados ao PT têm se manifestado contra o que chamam de golpe. “Não vai ter golpe” é o que esses manifestantes gritam nas ruas do Brasil, nas redes sociais e até em Londres. Temem que um impeachment sem base legal abra um perigoso precedente em um país marcado por golpes e cuja democracia encontra-se ainda em sua primeira metade de século. E que as conquistas sociais, ainda que mínimas, estarão em risco em um governo PMDB-PSDB.

Partidários do impeachment rechaçam a ideia de golpe argumentando que o mesmo está previsto na Constituição. Sim, isso é óbvio. Para que seja legítimo, porém, é preciso haver a caracterização de crime por parte do mandatário da nação – o que não é o caso. Que legitimidade haverá um governo empossado sem o voto da população e que chegou ao poder através de manobras políticas em conluio com setores da mídia e do empresariado que estiveram, em sua maioria, do lado da ditadura civil-militar que condenou, uma vez mais, após a colonização/escravidão, a história do país? Que legitimidade haverá um processo de impeachment aberto por alguém como Eduardo Cunha, com extensa lista de mal feitos? Que futuro terá o combate à corrupção, tão alardeada pelos apoiadores do impeachment, uma vez que a turma PMDB-PSDB assumir o país?

O espetáculo é trágico, afinal. E não há mocinhos. Vale lembrar: foi o PT que escolheu se aliar ao PMDB em primeiro lugar; que escolheu dar a vice-presidência a Michel Temer; que buscou se aliar a Eduardo Cunha e Renan Calheiros até o último momento; que apertou a mão de figuras como Paulo Maluf, José Sarney, Fernando Collor, entre tantos outros. Foi o PT que se aliou às grandes empreiteiras do país, por vontade própria, engendrando acordos escusos em nome de um desenvolvimento capenga, desrespeitando o meio ambiente e as populações indígenas, por exemplo, questões caras à esquerda que o apoiou. Foi o PT, afinal, que se sentiu parte do clube da elite e virou as costas ao projeto de país que um dia julgou representar para encenar um projeto de poder que agora cai de forma melancólica, deixando um vácuo de representatividade das camadas populares que ninguém sabe ainda como será preenchido.

O decorrer dos dias, e das horas, traz à baila novos fatos em velocidade tão grande que fazer previsões e tomar posições tornam-se exercícios de extrema delicadeza. Certo é que o que cada lado da polarização julga como ideal dificilmente acontecerá: Dilma Rousseff não irá renunciar, nem encontrará ambiente para governar caso se salve do impeachment. Em caso de impedimento da presidente, o Brasil passará a ser governado por uma corja sem legitimidade. A mídia nativa, certamente, noticiará um possível impeachment como a redenção de um país frente aos desmandos de um governo de “esquerda”, decretando a falência do pensamento progressista. E a animação instantânea do mercado fará com que a população sinta que algo está melhor, quando na verdade estaremos diante do caos. As ruas certamente não ficarão caladas, aumentando a chance de conflitos com as forças repressivas do Estado, que agirão com sua habitual truculência quando se trata de manifestações populares não apoiadas pelo aparato midiático. Em caso de vitória governista, Lula deverá voltar ao centro do poder de facto, ou seja, de uma forma ou de outra, Dilma não mais governará o país – já não governa, aliás. A volta de Lula animará a militância petista, enfurecendo aqueles do outro lado do espectro, elevando igualmente a chance de confrontos. Daqui em diante é impossível prever o desenrolar dos fatos. Há remota chance de novas eleições gerais. A chapa Dilma-Temer ainda pode ser cassada pelo Tribunal Superior Eleitoral, mas isso não ocorrerá tão rapidamente.

É preciso desassombro para entender o que se passa no Brasil hoje. Impeachment não é solução. Gritar “não vai ter golpe” não é suficiente. No dia seguinte da história, que país teremos? Crises trazem, em meio à neblina, janelas de oportunidades. Podemos avançar rumo a uma democracia social, mais justa e inclusiva, ou voltar algumas casas em direção ao Brasil das oligarquias, dos poderosos de sempre. Essa história, com Dilma ou sem Dilma, está ainda longe de chegar ao novo normal.