Um observador estrangeiro desavisado que pretenda entender o que se passa no Brasil hoje através da mídia brasileira tradicional muito provavelmente entrará em parafuso. De acordo com a narrativa dominante, o país atravessa uma tripla crise: econômica, política e moral. A cada dia, ao sabor de informações cuidadosamente selecionadas, umas dessas três opções ganha destaque, em uma roleta russa apontada para nada menos que o futuro do país.
Tentemos ao menos entender, portanto, de onde vem tamanho desarranjo. No âmbito econômico, novo estudo do Centro para Pesquisa Econômica e Política (CEPR, em inglês) é bastante elucidativo. Conclui, com razão, o que governistas e opositores minimamente devem concordar: a desaceleração econômica do Brasil, mais do que resultado de fatores externos, embora estes tenham sim certa influência, é fruto de escolhas políticas feitas pelo próprio governo. Escolhas que hoje ameaçam as conquistas dos últimos anos na redução da pobreza, no aumento da renda e em certa diminuição da desigualdade.
A pesquisa “Demanda agregada e a desaceleração do crescimento econômico brasileiro de 2011 a 2014”, feita pelo Pesquisador Sênior Associado do CEPR Franklin Serrano e o economista Ricardo Summa, analisa em detalhes a desaceleração da economia brasileira nos anos 2011-2014, na qual o crescimento econômico foi em média 2,1% ao ano, comparado com os 4,4% no período 2004-2010. Os autores argumentam que a desaceleração foi resultado do acentuado declínio da demanda doméstica liderada pela política do governo e não por uma queda nas exportações ou por qualquer mudança externa.
A economia brasileira tinha espaço para crescer depois de 2010, mas o governo escolheu reduzir a demanda agregada através de mudanças nas políticas monetária, fiscal e macroprudencial. A saber: 1) O Banco Central começou um ciclo de aumento de juros após fevereiro de 2010 que durou até agosto de 2011, elevando a taxa Selic de 7,5% a 13,5%. Esse aumento e medidas macroprudenciais reduziram o crescimento do crédito, o que ajudou a terminar com o boom no consumo; 2) No final de 2010 o governo promoveu, através de uma acentuada redução no crescimento do gasto público, um forte ajuste fiscal para aumentar o superávit primário e alcançar a meta de 3,1% do PIB em 2011; 3) Em 2011 o investimento público, tanto do governo federal quanto das empresas públicas, caiu dramaticamente, diminuindo 17,9% e 7,8% em termos reais, respectivamente.
As políticas contracionárias do governo levaram a um nítido declínio no investimento privado, assim o investimento total (público e privado) caiu dramaticamente. Nas palavras de Mark Weisbrot, Co-Diretor do CEPR: “O esforço para convencer o setor privado a liderar o crescimento, com corte de investimento público e outras medidas que reduzem a demanda agregada, não funcionou no Brasil”.
Há, porém, outra questão fundamental que praticamente inexiste nas análises produzidas pela mídia tradicional: o sistema da dívida. O ajuste fiscal hora em curso no país tem por objetivo garantir um superávit primário capaz de pagar os juros da dívida pública. Tal dívida é instrumento comum usado por governos para custear investimentos ou aumentar recursos. Para isso, o Tesouro Nacional emite títulos da dívida pública e o Banco Central os vende em leilão.
Ocorre que a taxa básica de juros, a Selic, é usada, entre outras coisas, para remunerar aplicações feitas nesses títulos. De dezembro de 2014 a junho de 2015, essa taxa subiu de 11,75% para 13,75% ao ano. Sobre uma dívida pública de 2,451 trilhões de reais, esse aumento representa um pagamento extra de juros de 49 bilhões de reais. Como entender, então, que o governo federal faça um ajuste fiscal que corta o orçamento em quase 80 bilhões de reais e, ao mesmo tempo, eleva os gastos públicos com o aumento da Selic?
O dinheiro destinado ao pagamento do serviço da dívida é o mesmo que falta para investir no país. E isso é essencialmente uma escolha política. Estivesse o governo comprometido com a superação desse entrave, condicionaria o necessário ajuste fiscal a uma auditoria da dívida pública, prevista na Constituição, para desmascarar possíveis fraudes nos títulos que estão em poder de bancos e grandes empresas, assim como a prática de juros sobre juros, que é ilegal. Qualquer menção a essa possibilidade, porém, é taxada de “calote” pelos agentes do mercado financeiro e pela narrativa dominante.
INDIGNAÇÃO SELETIVA
Na esteira da recessão econômica, as tais crises política e moral. Quando a presidente Dilma Rousseff, recém-reeleita para o quarto mandato seguido do PT no governo federal, optou por fazer aquilo que combatera durante a campanha, perdeu seu capital político. A reprovação ao seu governo, obviamente, não parte apenas daqueles que não votaram nela. A insatisfação é geral e os motivos, distintos.
No Congresso, um PMDB hostil passou a comandar a pauta e a dificultar a aprovação das medidas do ajuste fiscal, além de aprovar outras que elevam os gastos públicos, com apoio da oposição – que defendia o ajuste antes da eleição, mas que passou a jogar de olho no enfraquecimento do governo Dilma, sem muito se preocupar com os destinos do país. Afinal, se o governo não é coerente, como esperar que a oposição, coerente seja? Se até quadros do PT votaram contra o ajuste de Dilma, para que a oposição precisa estar unida?
Ironias à parte, qualquer projeto de Brasil, se é que em algum dia houve um, está hoje sob a sombra dos interesses particulares dos donos do poder. E, como cereja do bolo, a crise moral representada pelo caso de corrupção do momento, sob a investigação da Operação Lava Jato. Prova máxima de que o PT, uma vez no poder, se portou como os demais, os desmandos na Petrobras mostram não apenas um projeto obscuro de poder petista, como muitos querem crer, mas o modus operandi da oligarquia política e econômica no Brasil. E aqui entra a evidente indignação seletiva, a enxergar o demônio apenas aonde convém aos próprios olhos.
Enganam-se aqueles que acreditam no impeachment como solução para a crise. Este jornal não se furta a criticar os caminhos escolhidos pelo governo, mas espera que, para o bem da democracia e da estabilidade institucional, o mandato de Dilma Rousseff se complete.
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