Dilma 2.0: De crescimento econômico com distribuição à estagnação e crescente desigualdade?

brasilobserver - ago 17 2015
BO_06.07
Foto: Lula Marques/ Agência PT

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O ponto de partida desta análise é o conceito de “entangled inequalities”, ou “desigualdades entrelaçadas”, na tradução literal

 

Por Sérgio Costa, Barbara Fritz e Martina Sproll (Universidade Livre de Berlim) – Este artigo foi publicado originalmente pela LASA Forum, da Latin American Studies Association

O Brasil parece ter experimentado um “momento de igualdade” (Therborn 2015) durante a última década. A desigualdade de renda, de acordo com o índice Gini, foi reduzida de 0.60 para 0.53 entre 2000 e 2012. Houve também mudanças em outras dimensões, como em relação às desigualdades de gênero e raça, por exemplo. Por um lado, o Brasil está seguindo a tendência de quase todos os países da América Latina. Por outro, sua desigualdade permanece bastante alta em uma perspectiva comparada; a média do coeficiente Gini dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é de 0.31 (dado do Banco Mundial de 2012).

O ponto de partida desta análise é o conceito de “entangled inequalities”, ou “desigualdades entrelaçadas”, na tradução literal. Este conceito foca tanto na multidimensionalidade das desigualdades – socioeconômicas, ecológicas, e de poder – quanto em suas características históricas e transnacionais, ou seja, as interdependências entre determinantes internos e externos e entre estruturas do passado e do presente (www.desigualdades.net; ver Braig, Costa, e Göbel 2015). Diante desse amplo conceito, perguntamos neste breve artigo: Quais foram as forças motrizes desse momento de igualdade? Testemunhamos apenas um parêntese ou uma guinada histórica no Brasil, país este que uma vez foi apelidado de “Belindia” por conta da coexistência entre diversificação industrial e desigualdade enraizada desde os tempos coloniais e escravagistas? De que forma o esperado baixo crescimento econômico durante o segundo mandato da presidente  Dilma Rousseff afeta as desigualdades sociais?

 

ASCENSÃO E QUEDA

As políticas redistributivas colocadas em prática pelo governo liderado pelo PT durante a última década e seus efeitos estão associados a um complexo arranjo de fatores internacionais e domésticos. Em escala internacional, apesar de significativas flutuações, o preço das commodities permaneceu elevado durante a maior parte do tempo, permitindo a expansão das atividades de mineração e agricultura para exportação no país. O fluxo de capital estrangeiro foi abundante, mesmo que de forma insustentável e voltado para o curto prazo. Tanto as condições do comércio quanto os fluxos financeiros resultaram em uma elevação da taxa de câmbio do dólar de 40% em termos reais entre 2004 e 2012.

Em escala doméstica, dentro da lógica do chamado “tripé macroeconômico”, desde o primeiro governo Lula a prioridade foi o controle inflacionário por meio de uma política de altas taxas flutuantes de juros e superávits primários. As condições favoráveis para o comércio de commodities brasileiras, como soja e minério de ferro, resultaram em crescimento econômico robusto, apesar da austera política fiscal e monetária. Aqui, a revalorização da moeda deu uma mãozinha para manter os preços domésticos sob controle. Essa política rigorosa veio acompanhada de políticas industriais ativas, como um programa de investimento público e crédito generoso, combinado com políticas sociais de amplo alcance.

A ortodoxia econômica então deu lugar a uma abordagem mais desenvolvimentista, que permitiu um afrouxamento das políticas ortodoxas diante de uma conjuntura de forte crescimento, superávits comerciais e baixa inflação. Com início gradual desde 2006, mas especialmente durante e logo depois da chamada crise financeira mundial, o Brasil ganhou reputação internacional por combinar política fiscal anticíclica, controles de fluxo de capital para atenuar a tendência de alta da moeda e expansão dos programas sociais.

O crescimento econômico, porém, não resultou em ganhos de produtividade nem em aumento do conteúdo tecnológico dos produtos feitos no Brasil. Ao contrário: o consumo estimulou a importação maciça de bens – graças ao alto valor do real diante do dólar – e o crescimento exponencial do setor de serviços doméstico. A balança comercial reflete drasticamente esse processo de desindustrialização, agravado pelo avanço do consumo interno e pela taxa de câmbio supervalorizada. Mesmo assim, em 2006, o Brasil não só alcançou um superávit comercial líquido, mas cerca de dois terços desse superávit era composto de bens de consumo intermediários ou finais. Em 2013, o país teve um déficit comercial líquido de bens manufaturados e semimanufaturados de 60 bilhões de dólares, espelhado por um excedente de exportação concentrado quase que exclusivamente em commodities (IEDI 2014). Como mostra a experiência histórica e os primeiros meses de 2015 demonstram mais uma vez, o preço das commodities não permanece alto para sempre.

Também em escala doméstica, a nomeação do novo Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e de outros atores econômicos sabidamente ligados ao mercado financeiro diminuiu a expectativa por políticas econômicas heterodoxas e crescimento econômico renovado.

 

MERCADO DE TRABALHO

Há um amplo consenso de que as forças dinâmicas por trás do recente declínio da desigualdade de renda no Brasil desde 2000 derivam das condições econômicas favoráveis e seus efeitos positivos no mercado de trabalho, no atendimento escolar e nas políticas sociais (UNDP 2013; Lustig, Pessino, e Scott 2013). Um olhar mais atento às atuais tendências do mercado de trabalho e das políticas sociais, porém, revela o desenvolvimento de contradições que ameaçam a sustentabilidade dos recentes efeitos da redistribuição.

À primeira vista, uma significativa mudança pode ser constatada em comparação à dramática deterioração do mercado de trabalho nos anos 1990. Não menos que 20 milhões de empregos foram criados desde 2003 (Ministério da Fazenda 2014) e vale a pena mencionar: muitos desses no mercado formal. Tal fato implica em mudanças sociais reais, uma vez que principalmente jovens e recém-formados se beneficiam de leis trabalhistas e assistência social. As tentativas de ampliar a inclusão foram reforçadas por medidas dos governos Lula e Dilma focadas na formalização através de programas para pequenas e micro empresas e para trabalhadores domésticos, assim como maior rigor na fiscalização por parte do Ministério do Trabalho.

Ainda assim, há controvérsias em relação à qualidade, qualificação e sustentabilidade do novo mercado de trabalho formal. Que tipos de trabalho foram criados para qual tipo de trabalhadores, e quais são as dinâmicas contraditórias fundamentais no mercado de trabalho? (Ver o debate em Sproll e Wehr 2014). Também aqui vínculos complexos com processos transnacionais têm de ser considerados. Em primeiro lugar, na esteira de um flexível e financeirizado regime capitalista de acumulação, uma compreensiva reestruturação do trabalho e dos processos de produção, assim como a desregulamentação e flexibilização das relações trabalhistas, pode ser notada globalmente, e também no Brasil. O grau de flexibilização do mercado de trabalho brasileiro é extremamente alto, como foi revelado, por exemplo, por uma taxa de rotatividade de 43.1% em 2012 (contra 41.8% em 2002); a maioria dos empregos teve duração de menos de um ano (45% duraram menos de seis meses), o que demonstra insegurança e instabilidade dos novos postos de trabalho criados (Druck 2014). Por essa razão, há uma situação contraditória de simultânea formalização e precarização que debilita tradicionais esquemas de proteção social ligados à duração do vínculo empregatício. A terceirização pode definitivamente ser considerada um dos principais motivadores da precarização, uma vez que se torna uma estratégia generalizada em todos os setores econômicos, incluindo o setor público e as empresas estatais. Isso indica uma grande transição do próprio aparato do Estado. Trabalhos terceirizados correspondiam, em 2011, a 25.5% dos empregos formais no Brasil (CUT 2011). Normalmente, o trabalho terceirizado é mais precário em termos de salário, tempo da jornada, condições, taxa de rotatividade e risco de saúde. Há várias formas de terceirização: entre outras mudanças, o número de trabalhadores por conta própria tem crescido substancialmente. Tais formas de precarização também indicam claramente a deterioração da capacidade organizacional dos sindicatos. Ao mesmo tempo, uma considerável inclusão de novos segmentos da sociedade ao mercado de trabalho formal pode ser notada, especialmente entre jovens, negros e mulheres, que antes estavam limitados ao setor informal. As mudanças recentes no mercado de trabalho consequentemente levam a novas segmentações de acordo com classe, raça e gênero.

 

POLÍTICAS SOCIAIS E IMPOSTOS

Desde 2003, o governo federal tem colocado em prática uma série de políticas sociais para a população de baixa renda e também para grupos específicos, como afrodescendentes, mulheres e “povos tradicionais”, entre outros. Os resultados sociais correspondentes são positivos: entre 2002 e 2013, a taxa de pobreza (incluindo extrema pobreza) caiu de 48.4% para 21.1% da população brasileira. No mesmo período, os gastos com políticas sociais aumentaram de 12.7% para 16.8% do PIB. Programas de transferência de renda para famílias pobres exerceram um papel proeminente nessa fase. Enquanto um programa anterior beneficiou cerca de 3.6 milhões de famílias em 2002, o programa Bolsa Família estava transferindo, em 2013, um benefício médio de R$ 142 para 14.1 milhões de famílias (CEPAL 2014 e Bielschowsky 2014). Entre os beneficiários nominais do Bolsa Família, 93% são mulheres e 73% são pessoas de cor. Apesar de sua importância crucial na redução da pobreza, o Bolsa Família e outros programas de transferência de renda têm efeito insignificante na redução da desigualdade de renda: esses programas podem explicar apenas uma pequena fração da redução no coeficiente Gini (Medeiros e Souza 2013; Lavinas 2013).

Entre as políticas focais colocadas em prática desde 2003, a lei de cotas aprovada em 2012 é provavelmente a medida mais abrangente. De acordo com a lei, 50% de todas as vagas em instituições federais de ensino superior são reservadas para estudantes oriundos de escolas públicas na proporção da participação da população negra e indígena que vive na respectiva região. Uma vez que cerca de 1,1 milhão dos 7,3 milhões de alunos de graduação matriculados em 2013 no Brasil estudavam em instituições federais (INEP 2014), e negros e indígenas representam 51% e 0,5% da população brasileira, respectivamente, o programa de cotas federais, se totalmente implementado no país, vai distribuir aproximadamente 280 mil vagas de estudo de acordo com critérios raciais e étnicos.

Nos últimos anos, as desigualdades de rendimento entre homens e mulheres e em uma magnitude menor entre negros e brancos diminuíram. Em 2002, o rendimento médio das mulheres estava em 49,9% da média masculina, aumentando para 58,4% em 2012; a renda afrodescendente média, em 2002, correspondia a 47,2% da média dos brancos, aumentando para 54,6% em 2012 (IPEA 2013). Esta redução da distância socioeconômica entre homens e mulheres, bem como entre negros e brancos, não pode ser explicada, pelo menos não exclusivamente, por políticas de gênero e raça. Na medida em que essas políticas fomentem a articulação política de de negros e mulheres, elas contêm relevância crucial para mitigar assimetrias de poder em longo prazo. Não obstante, as medidas têm atingido até agora apenas uma pequena parcela das populações negra e feminina no Brasil, produzindo dessa maneira efeitos socioeconômicos mínimos a nível agregado.

Muito mais relevante aqui é o salário mínimo nacional. Por lei, os reajustes anuais são iguais à soma da inflação nos últimos 12 meses mais a taxa de crescimento econômico de dois anos antes. Esta política levou a um aumento real do salário mínimo de cerca de 75% entre 2002 e 2013. Como mulheres e negros ainda estão em grande parte nos setores laborais com baixos salários, eles se beneficiam mais do aumento do salário mínimo do que os homens e brancos.

O impacto agregado da política de salário mínimo atual também é expressivo em termos de redistribuição geral, como detectado por várias simulações de econometria que mostram que o salário mínimo crescente é o fator mais importante da recente queda da desigualdade no Brasil (Saboia 2014). Embora o novo gabinete de Dilma Rousseff tenha decidido prorrogar a política de ajuste atual, as recentes (e esperadas) baixas taxas de crescimento econômico causarão necessariamente uma estagnação dos salários mínimos reais, com consequências negativas para a redistribuição de renda.

Finalmente, as políticas tributárias, como instrumento decisivo para promover a redistribuição, não mudaram substancialmente desde que Lula chegou ao poder em 2003. As receitas tributárias abrangendo por volta de 36% do PIB são comparáveis ​​com os números encontrados em vários países da OCDE. Porém, a participação desproporcional dos impostos indiretos, responsáveis por cerca de metade da receita, a tributação modesta da renda (a maior taxa é de 27.5%; na Suécia é de 56.6 %), e a baixíssima tributação de lucros financeiros levam a um impacto regressivo dos impostos na estrutura de renda brasileira. Ou seja, no Brasil, as políticas tributárias não diminuem, mas aumentam o coeficiente Gini, ou seja, aumentam a desigualdade.

A concentração da riqueza também é impressionante. Com base na análise de 25 milhões de declarações fiscais, Castro (2014) conclui que apenas 406 mil contribuintes (0,2% da população nacional) possuem 47% de todas as propriedades declaradas e títulos. Segundo ele, a “mera” introdução de uma taxa de imposto de 15% para o capital e o lucro financeiro combinado com aportes de 35% e 40% para altos salários podem reduzir o índice Gini em 20%.

Desde 2003, o PT nunca se sentiu forte o suficiente para promover importantes reformas tributárias. Na coalizão atual dirigida por Dilma Rousseff, criticada dentro do próprio PT como “neoliberal”, uma reforma progressiva do sistema tributário não é visível no horizonte.

 

CONCLUSÃO

Durante os 12 anos em que o PT está no poder, tanto Lula quanto Dilma alcançaram resultados econômicos e sociais impressionantes. Neste período, o PIB per capita cresceu 64%, a pobreza foi drasticamente reduzida e a distribuição de renda se tornou notavelmente menos desigual. Estes triunfos derivam mais das políticas setoriais específicas e de uma conjuntura econômica externa favorável do que de uma mudança estrutural induzida por um projeto político coerente. Economicamente, a baixa produtividade persistente no sector industrial e de serviços combinada com uma “reprimarização” das exportações em um contexto marcado pela queda dos preços das commodities têm sufocado o crescimento. Socialmente, políticas sociais de redistribuição parecem ter atingido seu limite. Neste contexto, estimular o crescimento econômico e continuar a promover a redistribuição social exigem reformas estruturais em dois campos complementares, quais sejam, investimentos públicos anticíclicos a fim de promover a produtividade e dar o pontapé inicial na economia, e também a introdução de políticas de redistribuição abrangentes, tais como impostos progressivos e reformas estruturais do mercado de trabalho que podem conter o avanço da precarização.

Desde janeiro, Dilma Rousseff optou essencialmente pela estratégia oposta: cortes nas despesas públicas, reforma tributária sem redistribuição progressiva e concentração nas políticas sociais que têm baixo impacto redistributivo. A consequência foi uma contração de 0,2 por cento do crescimento do PIB no primeiro trimestre de 2015. Os resultados mais prováveis ​​desta estratégia são continua estagnação econômica e crescentes tensões sociais.

BRASIL OBSERVER – EDIÇÃO 30