A economia refém do ajuste fiscal

brasilobserver - ago 17 2015
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Os ministros da Fazenda, Joaquim Levy, e do Planejamento, Nelson Barbosa, falam sobre a redução da meta de superávit primário deste ano, durante coletiva no ministério da fazenda (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

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Governo brasileiro cai na armadilha que criou: recessão gerada pela austeridade impede que os objetivos dela, a austeridade, sejam cumpridos

 

Por Wagner de Alcântara Aragão

O segundo semestre começa no Brasil com o governo federal promovendo mudanças em sua política macroeconômica, o que deve, portanto, trazer mais impactos à economia real e aos serviços públicos oferecidos à população. O ajuste fiscal implementado desde o início do ano gerou efeitos colaterais que fizeram ruir a própria razão de ser do aperto monetário, qual seja a busca por um superávit primário que deixasse o país bem visto no mercado financeiro internacional. Coube aos ministros da Fazenda, Joaquim Levy, e do Planejamento, Nélson Barbosa, anunciarem no dia 22 de julho as modificações, o que está sendo chamado de “ajuste do ajuste”.

As mudanças foram encaradas por analistas críticos ao caminho de austeridade seguido pela presidenta Dilma Rousseff neste segundo mandato como um recuo e, ao mesmo, um sinal de certa desorientação da equipe econômica. É avaliação, por exemplo, do professor Pedro Henrique Evangelista Duarte, doutor em Desenvolvimento Econômico e docente da Universidade Federal de Goiás (UFG). “O que temos é uma política econômica esquizofrênica”, afirmou o professor ao Brasil Observer. “Uma política voltada para uma determinada classe, os investidores, que simplesmente não dão ‘resposta’ alguma ao governo, visto que os resultados esperados – a volta dos investimentos privados – permanecem baixos”, completou.

 

META DE SUPERÁVIT

O recuo mais substancial anunciado pelos ministros Levy e Barbosa foi a redução drástica da meta de superávit primário para 2015. A meta estabelecida em janeiro era de R$ 66,3 bilhões para este ano, o equivalente a 1,1% do Produto Interno Bruto (PIB). Agora, a equipe econômica baixou essa meta para R$ 8,75 bilhões – ou 0,15% do PIB. Superávit primário é o montante que o governo economiza para destinar ao pagamento dos juros da dívida pública. A meta de superávit primário inclui a economia de gastos não só da União (governo federal), mas também das estatais, Estados e Municípios.

E por que a meta está sendo reduzida? Por causa de sequelas do próprio ajuste fiscal. Uma política monetária baseada nesse princípio, o da austeridade, faz a economia se retrair. Para que o governo alcance o superávit, ele precisa cortar gastos e investimentos. Assim, menos recursos públicos são destinados para os serviços e obras públicas, para as linhas de crédito que financiam a compra de imóveis, para a compra de equipamentos pela indústria, ou ainda para outras formas de consumo, por parte das famílias. Com menos dinheiro em circulação, a roda da economia deixa de girar.

Quando a economia para de crescer, a arrecadação de tributos também é prejudicada. Se entra menos dinheiro, fica mais difícil para o governo economizar. E é justamente isso o que aconteceu no primeiro semestre deste ano. Mesmo com o governo tendo cortado R$ 69 bilhões do orçamento de 2015, alcançar a meta inicial de superávit deixou de ser improvável para se tornar missão impossível. “Todo esse processo é resultado da desorientação do governo quanto ao que exatamente precisava ser feito”, afirmou o professor da UFG.

 

BALANÇOS

Depois do anúncio de Joaquim Levy e Nélson Barbosa, balanços do Ministério da Fazenda e do Banco Central confirmaram que atingir aquele superávit primário estabelecido no começo de 2015 se tornou inviável. No primeiro semestre, o setor público consolidado (União, Estados, Municípios e estatais) até conseguiu saldo positivo, de R$ 16,2 bilhões. O montante, todavia, é inferior aos R$ 29,4 bilhões do mesmo período em 2014. No acumulado em 12 meses (julho 2014 a junho 2015), o resultado é de déficit primário: R$ 45,7 bilhões.

Quando analisado o desempenho apenas do governo federal (Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central), o saldo também foi de déficit no primeiro semestre: R$ 1,9 bilhão. Já as empresas estatais federais, estaduais e municipais (exceto Petrobras e Eletrobras) somaram déficit primário de R$ 1,159 bilhão. O superávit primário do setor público consolidado só foi alcançado graças ao saldo positivo obtido pelos governos estaduais (R$ 16,426 bilhões no semestre) e governos municipais (R$ 2,868 bilhões), segundo o Banco Central.

Já o relatório do Ministério da Fazenda apontou um déficit primário nas contas do governo federal da ordem de R$ 1,6 bilhão, no primeiro semestre deste ano. Em valores reais, isto é, corrigidos pela inflação, o resultado é o pior para os seis primeiros meses do ano desde a criação da série histórica, em 1997. E o problema não foi aumento de despesas governamentais – elas se mantiveram praticamente no mesmo patamar (alta de 0,5%). A receita total (arrecadação de impostos, taxas e contribuições), todavia, caiu 3,5%.

 

CORTES PROFUNDOS

Para que as despesas governamentais não crescessem, os cortes no orçamento representaram reduções cruciais em obras e investimentos importantes para o país. Os investimentos do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), por exemplo, diminuíram 36%, somando menos de R$ 20 bilhões. O PAC, como se sabe, é um conjunto de obras (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, energia elétrica, saneamento, mobilidade urbana) fundamentais para dotar o país de infraestrutura necessária para se expandir economicamente e se desenvolver socialmente. Diminuíram também as despesas com o funcionalismo (1,3%), o que reflete achatamento de salário de servidores públicos e estagnação dos quadros de pessoal – por tabela, prejuízo à qualidade dos serviços.

Além de todas as consequências negativas citadas – estagnação ou recessão da economia, sucateamento dos serviços públicos, freio nas obras de infraestrutura e outros investimentos – o ajuste fiscal tem custado caro politicamente à presidenta Dilma Rousseff e sua gestão. O aperto monetário era programa de governo da candidatura de oposição. Dilma conseguiu na reta final das eleições do ano passado apoio decisivo exatamente por representar um obstáculo à ameaça de volta do neoliberalismo dos anos 1990. Há uma sensação generalizada de traição dos compromissos de campanha. A impopularidade atual da presidenta se deve muito à recessão econômica, e esta tem sido piorada exatamente pelo ajuste fiscal.

 

CONFIANÇA

Dilma e a equipe econômica defendem  o aperto argumentando que o Brasil não pode perder credibilidade no mercado internacional. A confiança no país seria mantida se os investidores percebessem o esforço para manter as contas públicas em ordem. Tal confiança seria essencial para que os investidores continuassem a apostar suas fichas no Brasil, investindo nas obras do Programa de Infraestrutura Logística (PIL), concebidas no modelo de parcerias público-privadas.

Atraindo investidores seguros da robustez fiscal do Brasil, a economia nacional superaria as dificuldades “momentâneas”, como tem afirmado a presidenta, e retomaria a trajetória de crescimento. O ajuste seria, portanto, um sinal claro do governo ao mercado dessa disposição incondicional em garantir superávit para pagar a dívida pública. A redução da meta do superávit não significaria um afrouxamento fiscal, apenas uma adequação a valores reais.

 

CENÁRIOS

Para o professor Pedro Henrique Evangelista Duarte, há um erro de diagnóstico da conjuntura, por parte do núcleo econômico e político do governo Dilma, que demonstra entender o cenário atual similar ao de 2003, quando da primeira eleição de Luís Inácio Lula da Silva. Como àquela altura Lula poderia representar, aos olhos do mercado, uma “ameaça”, a austeridade fiscal foi encarada como um mal necessário, como o remédio para se garantir a estabilidade política e econômica, e então a própria governabilidade. Funcionou na ocasião.

Agora, depois de um eleição extremamente polarizada, com vitória apertada de Dilma, decidiu-se pelo ajuste como forma de acalmar os ânimos do mercado e se reverter a instabilidade política. Não funcionou. O aperto trouxe recessão, insatisfação na base da presidenta e, consequentemente, tornou o governo mais frágil ainda.

“Há uma crença de que o cenário atual é similar ao de 2003, e que uma política de ajuste recessivo poderia organizar o caminho para os próximos anos. Temos um cenário bem diferente, especialmente se olharmos o que vem acontecendo com a economia internacional. Por exemplo, a China, importante parceiro do Brasil, tem apresentado queda em seu crescimento, e isso tem reflexos significativos no quadro da economia externa. Isso sem falar da crise na Europa, que também tem reflexos internos”, argumentou o professor da UFG.

 

GRAU DE INVESTIMENTO

De êxito concreto até o momento, o ajuste fiscal conseguiu impedir que o Brasil tivesse sua nota de grau de investimento rebaixada pelas agências de classificação de risco. A norte-americana Standard & Poor’s, em seu mais recente comunicado, em 28 de julho, continuou a manter o país classificado como seguro para investidores. “Houve uma correção significativa de política durante o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff”, diz a agência, ressalvando que o Brasil “enfrenta circunstâncias políticas e econômicas desafiadoras”.

A dificuldade de o governo aprovar as medidas de ajuste fiscal no Congresso; a aprovação, por parte do mesmo Congresso, de projetos que impactam nas despesas da União (como o que aplica às aposentadorias o mesmo índice de correção do salário mínimo); e os escândalos de corrupção envolvendo políticos dos mais diferentes partidos e grandes empresas e empresários fizeram a agência, por outro lado, revisar para “negativa” a perspectiva de nota futura.

 

NARRATIVA DA CRISE

Embora a credibilidade dessas agências de classificação sejam questionáveis – elas representam essencialmente os interesses do mercado financeiro, e não propriamente dos investidores do setor produtivo – o governo brasileiro, a classe política e a mídia nacional ainda levam muito em conta suas notas. As sinalizações dessas agências são amplamente repercutidas em telejornais, sites e por comentaristas econômicos das principais redes de rádio, encaixando-se ao discurso alarmista dos grandes veículos de comunicação.

Há pelo menos três anos, mesmo que muitas vezes desmentida pelos próprios fatos, a mídia entoa a palavra “crise” praticamente como um mantra. Raramente se faz uma ilação com outros períodos de dificuldades, muito menos comparações com o cenário externo, de modo a contextualizar e transmitir a real dimensão do problema. Um texto recente do crítico de cinema Pablo Villaça viralizou na internet justamente por escancarar a discrepância entre os fatos e as versões dos fatos. O texto opôs o tom “desalentador” do noticiário aos anúncios de resultados satisfatórios de investimentos de grandes empresas, nacionais e estrangeiras, que apontam o Brasil como um bom destino de investimentos, em que pese a conjuntura turbulenta.

“Eu fico realmente impressionado ao perceber como os colunistas políticos da grande mídia sentem prazer em pintar o país em cores sombrias (…) Uma coisa é dizer que o país está em situação maravilhosa, pois não está; outra é inventar um caos que não corresponde à realidade. A verdade, como de hábito, reside no meio do caminho: o país enfrenta problemas sérios, mas está longe de viver ‘em crise’. E certamente teria mais facilidade para evitá-la caso a mídia em peso não insistisse em semear o pânico na população – o que, aí, sim, tem potencial de provocar uma crise real”, escreveu.

 

MAIS CORTES

É fato também que o próprio governo, ao optar pelo caminho do ajuste fiscal recessivo, contribui para engrossar o coro da mídia e tornar fértil o terreno onde se forja um cenário de terra arrasada. Se por um lado a equipe econômica decidiu baixar a meta de superávit, não vai poupar o orçamento de novos cortes. Até o fechamento desta edição, o Tesouro Nacional confirmara o bloqueio de R$ 8,6 bilhões.

Mais da metade (55%) seriam recursos do PAC (R$ 4,66 bilhões). A tesoura não pouparia nenhum ministério, de acordo com o secretário do Tesouro Nacional, Marcelo Saintive. “Todos os ministérios serão afetados com cortes, mas vamos preservar áreas prioritárias nos ministérios da Educação e da Saúde”, ponderou. Com esse bloqueio de R$ 8,6 bilhões, os cortes no orçamento da 2015 alcançam R$ 78,5 bilhões – em maio, R$ 69,9 bilhões já tinham sido retirados.

Não bastasse isso, o Comitê de Política Monetária (Copom) decidiu em julho subir pela sétima vez seguida a taxa básica de juros da economia (Selic), que passou de 13,75% para 14,25% ao ano, uma das mais altas do mundo. A elevação encarece o crédito, tanto ao setor produtivo como ao consumo, impondo-se como mais um elemento a restringir o crescimento econômico. Centrais sindicais e representantes da indústria criticaram duramente o novo acréscimo.

A necessidade de se controlar a inflação é a justificativa dada pelo Copom para promover a alta da Selic. Os juros altos também atraem investidores do mercado financeiro, argumenta o comitê. Para o professor Duarte, da UFG, o foco da atual política econômica é que está equivocado. “Enquanto o governo se preocupa em [voltar a política econômica para os] investidores que sabe-se lá onde estão, a população tem sofrido os efeitos. Acho que o que falta ao governo é reorientar a política econômica para o atendimento da população.”

 

INDICADORES

 

Produto Interno Bruto

Janeiro-Março 2015: R$ 1,4 trilhão (-1,6%)

 

Vendas do Varejo

Janeiro-Maio 2015: +4,1% (receita nominal); -2,0% (volume de vendas)

 

Serviço

Janeiro-Maio 2015: +2,3% (receita nominal)

 

Produção Industrial

Janeiro-Maio 2015: -6,9%

 

Desemprego

6,9% (junho 2015)

 

*Variação em relação ao mesmo período do ano anterior | Fonte: IBGE

BRASIL OBSERVER – EDIÇÃO 30