A desigualdade traduzida em impostos

brasilobserver - jul 20 2015
impostos

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A carga tributária no Brasil é muito mais desigual do que propriamente alta, se comparada a outros países

 

Por Anna Beatriz Anjos e Glauco Faria*

Nas manifestações contra o governo de Dilma Rousseff realizadas em março e abril deste ano, eram várias as mensagens, em faixas e cartazes, que chamavam a atenção. Algumas pediam intervenção militar; outras, o fim da “doutrinação” por meio de Karl Marx ou até Paulo Freire. Algumas das mais incoerentes, porém, referiam-se aos tributos cobrados no Brasil. Houve quem dissesse que “sonegação não é corrupção” ou os que desejavam “o fim dos impostos”.

No Brasil, prevalece a ideia de que a carga tributária é alta demais e de que os governos não dão retorno suficiente em termos de serviços. O professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marcio Pochmann, também presidente da Fundação Perseu Abramo, contesta essa máxima. “Pagar impostos é um ato de cidadania – não há cidadania plena sem pagamento de impostos. Infelizmente, não somos um país de cidadania plena, nosso país é subdesenvolvido e nosso sistema tributário é derivado dessa condição de subdesenvolvimento.” A afirmação foi feita no seminário “De qual reforma tributária o Brasil precisa?”, realizado pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo.

Na ocasião, o auditor fiscal Marcelo Lettieri Siqueira fez referência a outro economista, o professor sul-coreano Ha-Joon Chang, autor do livro Chutando a Escada, para lembrar que a grita existente contra impostos, que faz parte do ideário neoliberal, contradiz as políticas e instituições adotadas pelos países ricos. As recomendações que hoje as nações desenvolvidas dão aos países em desenvolvimento são feitas como se eles reinventassem suas histórias para “chutar a escada” e não permitir que outros subissem ao seu nível. “Países com elevado PIB per capita têm alta carga tributária. Nenhum país se desenvolveu reduzindo a carga tributária”, afirmou Lettieri.

Sobre a suposta ineficiência estatal em prover serviços que correspondam à quantidade de recursos advindos dos tributos, o economista João Sicsú questionou: “E qual a saída? Reduzir a carga tributária e inviabilizar o que existe hoje?” “Não! Devemos sim melhorar a qualidade do gasto e impedir desvios de recursos, devemos combater qualquer ato de corrupção, por menor que seja. Mas temos que entender que com essa carga tributária precisamos solucionar problemas que os países avançados já resolveram há décadas. Por exemplo, o metrô de Paris tem mais de 100 anos. O sistema de saúde pública inglês tem quase 70 anos”, exemplificou.

 

CARGA TRIBUTÁRIA

Tendo em vista que os impostos são necessários para que o Estado funcione e opere suas mais básicas funções, parte-se para a próxima discussão: no Brasil, paga-se muitos tributos? “A carga tributária brasileira é muito baixa. Vocês podem estranhar, porque se costuma dizer que ela é muito alta, mas é muito baixa sobre patrimônio, riqueza e renda, por incrível que pareça. E é muito alta sim sobre consumo, esse é o problema”, explicou Dão Real Pereira dos Santos, diretor de Assuntos Institucionais do Instituto de Justiça Fiscal.

Dados concretos conferem embasamento ao argumento de Santos. Segundo a Receita Federal, em 2012, a carga tributária no Brasil – valor de todos os impostos pagos pelos cidadãos e empresas em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) – foi de 35,86%. Ficamos próximos ou atrás de países considerados desenvolvidos, como Reino Unido (35,2%), Alemanha (37,6%), Suécia (44,3%), França (45,3%) e Dinamarca (48%). Em 2013, última medição disponível, a proporção teve elevação e atingiu o patamar de 35,95%, mas não há números atualizados de outras nações para fazer comparação.

Na descrição do Fisco, consta que em 2013 os impostos sobre bens e serviços – os chamados “indiretos”, ou seja, embutidos nos preços finais e repassados ao consumidor – corresponderam a 51,2% de todo o valor. Tributos sobre a renda somaram apenas 18,1%; sobre folha de salários, 24,98%; e sobre propriedade, somente 3,93%.

Na tributação indireta, quanto menor a renda do consumidor, mais penalizado ele sai, pois maior parcela de seu salário será consumida, já que valor a ser pago é o mesmo para todos. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os 10% mais pobres da população mobilizam 32% da sua renda no pagamento de impostos, enquanto os 10% mais ricos gastam apenas 21%.

A auditora Clair Hickmann, que já dirigiu a Delegacia Especial de Instituições Financeiras (Deinf) da Receita Federal, explicou porque isso não deveria ocorrer. “Há alguns princípios básicos de justiça fiscal que estão na Constituição, mas não são observados pela legislação infraconstitucional”, destacou. “Um dos princípios consagrados é o da capacidade contributiva – ou seja, cada cidadão tem que contribuir para o financiamento fiscal de acordo com seu poder aquisitivo e econômico –, mas isso não acontece no Brasil. Há a isonomia, que vai no sentido da igualdade. E o outro princípio que considero muito importante é o da progressividade, fundamental para usar a ferramenta do tributo como distribuição de renda”, alegou. “Progressividade significa: quanto maior a renda, maior a alíquota.”

Embora seja calculado com base em tabela progressiva, o Imposto de Renda para pessoas físicas não obedece plenamente a esse princípio. “Precisamos discutir uma nova tabela para o Imposto de Renda, que contenha, na verdade, mais alíquotas. Não é possível que tenhamos aqui a mesma alíquota para quem ganha 5 mil reais e para quem ganha 50 mil. Temos que pensar uma proposta que faça justiça com a tributação sobre a renda”, observou o economista João Sicsú, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

IMPOSTOS SOBRE A RIQUEZA

Justamente para modificar esse quadro de desigualdade é que surgem as propostas de taxação das grandes fortunas. E cabe ressaltar que uma maior taxação sobre bens e propriedades não é exatamente uma pauta “de esquerda”. “Sei que muitos reclamam de impostos no Brasil, mas eles na realidade são baixos quando comparados com os EUA, Reino Unido ou Alemanha – e estes não são países muito de esquerda. [Angela] Merkel e [David] Cameron não têm governos esquerdistas. Ninguém dentro de outros partidos nesses países pede que os impostos abaixem. Por que isso? Eles são ‘esquerdistas malucos’? Não”, disse o economista Thomas Piketty, autor do livro O Capital no Século XXI, à Revista Fórum.

“Em muitos países extremamente ricos a taxação sobre a riqueza é maior do que a taxação sobre o consumo, e são países capitalistas que são mais competitivos que o Brasil. Acredito que existam muitas desculpas ruins para a elite não aceitar isso, mas do ponto de vista econômico e prático, não acho que eles tenham razão”, completou.

Dentro desse contexto, uma demanda é que a alíquota do imposto sobre herança, recolhida pelos estados e que hoje é de 8% no máximo (4% no Rio de Janeiro e São Paulo), seja elevada e cobrada de forma progressiva para os grandes montantes. Hoje, quem recebe uma pequena herança paga o mesmo que quem recebe uma grande fortuna. Nos EUA, há estados que cobram 18%, como o Nebraska; na Inglaterra, esta alíquota pode chegar a 40% e na França, a 60%.

“Warren Buffet e Bill Gates são grandes defensores do imposto sobre herança não por serem social-democratas. Warren diz que é um imposto importante porque não se tem nenhuma garantia de que o atleta ideal para disputar a Olimpíada seja o neto do que a disputou há 40 anos. Ou seja, para ele, o dinheiro tem que seguir um fluxo. Entre os liberais há uma justificativa muito clara, o imposto sobre herança serve para fazer o capitalismo continuar funcionando”, justificou o economista do Ipea José Aparecido Carlos Ribeiro.

A Constituição prevê a criação de tributos sobre grandes fortunas por meio de uma lei complementar. Atualmente, tramitam no Congresso diversas propostas nesse sentido. Uma delas, o projeto de lei complementar (PLP) 277, é de autoria da ex-candidata à presidência pelo Psol, Luciana Genro, e dos deputados Ivan Valente (Psol-SP) e Chico Alencar (Psol-RJ). Até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), quando era senador, em 1989, criou projeto para regulamentar o imposto. Desde 2000 a proposta aguarda votação.

As análises e dados à disposição mostram o quanto é essencial que se discuta uma reforma tributária para reduzir a desigualdade a efetivar a justiça fiscal no Brasil. No entanto, a exemplo do que aconteceu com o simulacro de reforma política votado na Câmara dos Deputados, este é outro conjunto de medidas que pode ser desfigurado e se tornar ainda pior do que já é. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), já anunciou que após a votação da proposta de reformulação do pacto federativo, que altera a partilha de recursos entre União, estados e municípios, deve encaminhar a discussão sobre a reforma tributária no Congresso.

 

*Esta matéria foi publicada originalmente na edição 203 da Revista Fórum (www.revistaforum.com.br), e editada pelo Brasil Observer

BRASIL OBSERVER – EDIÇÃO 29