Terceirização ampla e irrestrita bate à porta

brasilobserver - mai 20 2015
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Protestos contra o projeto de lei foram realizados nas maiores cidades do país, como no Rio de Janeiro (foto). De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), os trabalhadores terceirizados trabalham, em média, três horas a mais por semana do que os empregados formais, e recebem um salário 24% menor (Tomaz Silva/Agência Brasil)

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Manifestações devem se intensificar contra projeto de lei aprovado na Câmara que libera as empresas para contratarem mão de obra terceirizada. Em nome da redução do ‘custo Brasil’, país corre risco de precarizar relações trabalhistas

 

Por Wagner de Alcântara Aragão

No mês em que se comemoram o Dia Internacional do Trabalho e a abolição da escravatura no Brasil, o país deve assistir a um duro embate em torno de uma proposta que tende a precarizar as relações entre trabalhadores e empresários. Está no Senado, depois de ter o texto final aprovado pela Câmara dos Deputados em 22 de abril, um projeto de lei que libera amplamente a terceirização da mão de obra. A proposta tem acirrado a luta de classes na sociedade e servido também de instrumento de negociação entre os diversos interesses políticos-partidários no Congresso – e entre este e o Executivo.

A própria retirada do projeto da gaveta denota oportunismo. O projeto de lei foi apresentado em 2004 pelo então deputado federal Sandro Mabel (PSDB-GO). Depois de dez anos passando por todos os trâmites, o projeto estava parado na Mesa Diretora da Câmara desde abril de 2014. Coincidência ou não, a proposta foi desarquivada e colocada em pauta pelo presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), exatamente no momento em que o governo precisa contar com o apoio maciço do Legislativo para aprovar medidas de ajuste fiscal. Cunha, em 2013 (quando ainda não era presidente da Câmara), tinha apresentado requerimento pedindo tramitação de urgência da matéria, mas só agora conseguiu fazer a proposta andar – diante do enfraquecendo da base de apoio ao governo da presidenta Dilma Rousseff no Congresso, dominado por um PMDB “independente”.

Ficou implícito, ou quase explícito, um acordo que seguiu por este caminho: em troca da aprovação do ajuste, o governo não criaria maiores empecilhos à apreciação do projeto da terceirização. Se criasse, o ajuste estaria em risco. Por meio do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, o governo chegou a acordar com os parlamentares que no texto não se incluísse nenhum item que representasse diminuição de recolhimento de tributos por parte da União. É verdade, por outro lado, que o PT e outros aliados como o PCdoB, o Pros e, por úlitmo, o PDT, orientaram suas bancadas a rejeitarem o projeto na íntegra (mesma posição do Psol e do PSB). Não houve, porém, nenhum tipo de ação mais ofensiva da bancada governista nem do próprio governo para impedir a aprovação da medida.

A presidenta Dilma Rousseff não tem assumido um discurso de rechaço ao projeto. Nem durante reunião com representantes das centrais sindicais brasileiras, ocorrida no Palácio do Planato na véspera do 1º de maio, Dilma deixou claro se vai vetar ou não a matéria, quando chegar em suas mãos. A presidenta criticou pontos do projeto aprovado pela Câmara, entretanto ressalvou que o país carece de uma regulamentação da terceirização – em torno de 12 milhões de brasileiros atuam hoje como terceirizados. “A regulamentação precisa manter, do nosso ponto de vista,  a diferenciação entre atividades fim e meio nos mais diversos ramos da atividade econômica. Para nós, é necessária [a diferenciação] para assegurar que o trabalhador tenha a garantia dos direitos conquistados nas negociações salariais. E também para proteger a Previdência Social da perda de recursos”, ponderou a presidenta.

O coro pelo veto, todavia, engrossa entre sindicalistas, parlamentares e militantes de esquerda, movimentos sociais progressistas e defensores de causas trabalhistas. Dada a goleada que marcou a aprovação do projeto na Câmara – 324 votos a favor, 137 contra e duas abstenções – e ao perfil conservador do Senado, os trabalhadores calculam que, pelo Legislativo, vai ser muito difícil reverter a situação. Se nas últimas semanas manifestações contra o projeto levaram milhares às ruas das maiores cidades do país, não deverá ser diferente agora que a matéria está entre os senadores.

‘CUSTO BRASIL’

Do lado da classe empresarial, os industriais estão entre os defensores mais fervorosos da regulamentação e ampliação da terceirização. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) chegou a veicular na televisão, em horário nobre, em meados de abril, peças publicitárias em que o presidente da entidade, Paulo Skaf, aparece pessoalmente enaltecendo e pedindo apoio ao projeto da terceirização da mão de obra. A Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), tão logo a proposta passou pela Câmara, também comemorou publicamente o feito. A Fiesp, a Firjan e a Confederação Nacional da Indústria (CNI), entre outras entidades empresariais, argumentam que a regulamentação da terceirização vai fomentar a geração de empregos e, além disso, assegurar aos terceirizados as garantias trabalhistas dos demais trabalhadores.

As manifestações dessas entidades não têm ressaltado, porém, o ponto que mais agrada o setor: a diminuição das despesas com encargos trabalhistas. Podendo, por lei, contratar um funcionário terceirizado inclusive para a atividade-fim do negócio – o texto final aprovado pela Câmara dos Deputados prevê essa possibilidade – a empresa se vê livre a obrigação de gastar com recolhimento de previdência social e fundo de garantia, pagamento de salário educação e provisões de férias e 13º – isso tanto para funcionários fixos quanto para contratações para suprir férias ou afastamentos.

Os encargos trabalhistas são apontados pelos empresários como um dos principais componentes do chamado “custo Brasil”, isto é, um conjunto de despesas que encarecem a produção e a prestação de serviços e que, dessa forma, travam a expansão de empreendimentos e o desenvolvimento econômico. De acordo com levantamento da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) – denominado “O impacto do ‘custo Brasil’ na competitividade da indústria brasileira de bens de capital” – neste setor os encargos trabalhistas respondem por até 20% da receita líquida de vendas. Ainda segundo o estudo, praticamente 4% dessas despesas se referem ao que o levantamento classifica de “tributos não recebíveis”, isto é, gastos sem qualquer tipo de retorno à atividade empresarial. O desenvolvimento do setor de bens de capital mecânicos é o balizador do desenvolvimento industrial de um país e, por consequência, da própria economia, assinala a Abimaq.

UMA CHINA

Ainda que a necessidade de reduzir o “custo Brasil” seja consenso entre trabalhadores e empresários, entre progressistas e ortodoxos, o corte por meio da flexibilização trabalhista está longe de ser a saída apropriada, na avaliação de um representante do próprio governo Dilma, o ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger. Se a presidenta tem sido comedida em suas palavras, Mangabeira Unger não tem poupado críticas ao projeto de lei da terceirização do trabalho aprovado pela Câmara dos Deputados.

Um dia depois da sessão que chancelou o texto base do projeto, publicamente o ministro condenou a medida. “Nós não podemos avançar apostando na precarização do trabalho, no aviltamento do salário e na desqualificação do trabalhador. Não podemos prosperar no Brasil como uma China com menos gente”, declarou à imprensa. Semanas depois, em entrevista ao jornalista Luís Nassif, na TV Brasil (emissora pública), Mangabeira Unger classificou o projeto da terceirização como um “eufemismo neoliberal da flexibilidade”.

Para o ministro, ao mesmo tempo em que a informalidade no mercado de trabalho caiu de 60% a 40% nos últimos anos, houve um aumento da precarização, representada principalmente pelo processo de terceirização. Mangabeira Unger até defende um marco regulatório para isso, desde que esteja em consonância com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) brasileira, a qual fixa os direitos dos trabalhadores formais do país. “A questão é o seguinte: nós vamos permitir que a maioria dos trabalhadores brasileiros sejam jogados na insegurança econômica radicalmente, ou nós vamos resgatá-los, criando um novo regime de leis que protejam, representem e organizem esses trabalhadores organizados?”, questionou.

‘PEDALADA’

Seja por convicção ideológica semelhante à de Mangabeira Unger, ou pelo embate político-partidário com Eduardo Cunha e com o Executivo, o  presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), tem se posicionado contra o texto aprovado pela Câmara dos Deputados. Mais que isso: contrariando a vontade de Cunha, Renan Calheiros advertiu, assim que o projeto chegou ao Senado, que não tem pressa na apreciação da proposta. “Ter pressa nessa regulamentação significa, em outras palavras, regulamentar a [terceirização da] atividade-fim, e isso é um retrocesso, uma pedalada no direito do trabalhador”, argumentou Calheiros à imprensa, assim que recebeu a matéria. Segundo ele, o projeto terá “tramitação normal” no Senado, e será amplamente debatido. Um primeiro grande debate envolvendo diversas entidades estava marcado para o dia 12 de maio.

Em 28 de abril último, Renan Calheiros manteve dois encontros com partes que divergem sobre o projeto da terceirização do trabalho. Primeiro, reuniu-se com o presidente da CNI, Róbson Braga de Andrade. Depois, recebeu presidentes de centrais sindicais. O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas, saiu do encontro demonstrando otimismo quanto à possibilidade de correções no projeto que possam ser feitas no Senado. “[Renan Calheiros] colocou claramente que a desregularização é ruim para o Brasil. No momento em que o Brasil precisa de arrecadação e desenvolvimento econômico, rasgar a legislação trabalhista não trará nenhuma arrecadação nesse sentido”, disse Freitas à imprensa. “O Brasil tem alguns valores importantes que a gente foi construindo ao longo da história. Getúlio Vargas deixou um legado, a carteira assinada e a CLT, que agora corremos risco de perder”, frisou.

Além de tema recorrente nas celebrações de 1º de maio, o projeto da terceirização do trabalho ainda promete ser pivô de embates nas próximas semanas. A própria CUT, por exemplo, não descarta incluir entre as estratégias de resistência ao projeto a convocação de uma greve geral. A classe empresarial, com expertise em lobby no Congresso, parece também disposta a investir no convencimento da opinião pública, por meio, inclusive, de anúncios publicitários. É de se esperar que Senado e Câmara, ou mais precisamente Renan Calheiros e Eduardo Cunha, também sejam colocados em choque, caso os senadores não tratem o projeto com a prioridade esperada pelos deputados, ou promovam mudanças substanciais no texto.

Dependendo do resultado disso tudo, aí será a vez, então, de a presidenta Dilma Rousseff ser convocada a assumir uma posição definitiva: satisfazer o interesse econômico e tentar recuperar o apoio da classe empresarial ou fazer valer o compromisso de campanha – fundamental para sua vitória, diga-se de passagem – de não mexer nos direitos dos trabalhadores. Eis a questão posta à presidenta.

 

O QUE DIZ O PROJETO

O projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados estabelece, entre outras, as seguintes regras para a terceirização do trabalho:

PERMISSÕES | As empresas podem contratar trabalhadores terceirizados em qualquer ramo de atividade para execução de qualquer tarefa, seja em atividade-fim ou meio. Atualmente, a terceirização só é permitida em atividades de suporte, como limpeza, segurança e conservação. A terceirização da atividade-fim é o ponto que gera mais polêmica, pois possibilita que uma empresa não tenha empregado nenhum, terceirizando todas as funções de sua atividade.

RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA | A fornecedora de mão de obra terceirizada e a empresa contratante têm responsabilidade solidária: ambas podem responder judicialmente por direitos não honrados.

FISCALIZAÇÃO | A contratante deve fiscalizar se a contratada está em dia com salário, férias, vale-transporte, FGTS e outros direitos.

SINDICALIZAÇÃO | Quando a terceirização for entre empresas que pertençam à mesma categoria econômica, os empregados da contratada serão representados pelo mesmo sindicato que representa os empregados da contratante. Foi retirada do texto a necessidade de observar os respectivos acordos e convenções coletivas de trabalho. Esse aspecto fragiliza a relação trabalhador-empregador, o que leva à precarização do trabalho e põe em risco direitos trabalhistas.

DIREITOS | Os trabalhadores terceirizados têm direito às mesmas condições oferecidas aos empregados da contratante: alimentação em refeitórios, serviços de transporte, atendimento médico ou ambulatorial, cursos e treinamento, quando necessários.

SUBCONTRATAÇÃO | A empresa que fornece mão de obra pode subcontratar trabalhadores de outra empresa em casos de serviços técnicos altamente especializados e se houver previsão contratual.

DEFICIENTES | As empresas terão que contabilizar todos os empregados diretos e terceirizados para calcular a cota de funcionários com deficiência a serem contratados, de 2% a 5%.

PREVIDÊNCIA | As fornecedoras de mão de obra pagarão alíquota de 11% sobre a receita bruta para a Previdência Social.

MULTA | Se as normas forem violadas, a empresa infratora estará sujeita a multa igual ao valor mínimo estipulado hoje para inscrição na dívida ativa da União (mil reais) por trabalhador prejudicado.

VEDAÇÃO | A contratante não pode usar os trabalhadores terceirizados para tarefas distintas das previstas em contrato.

DOMÉSTICOS | A lei não vale para trabalhadores domésticos. Emenda também vedou a aplicação para guardas portuários.

TRIBUTOS | A empresa que contrata terceirizados deve recolher antecipadamente parte dos tributos devidos pela contratada.

BRASIL OBSERVER – EDIÇÃO 27