Vamos debater a mídia no Brasil?

brasilobserver - abr 13 2015
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Regular a mídia não é censura. Países como Inglaterra, França, Alemanha e até Estados Unidos regulam a mídia de maneiras mais determinadas que o Brasil

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Regular a mídia nada mais é do que regulamentar os artigos da Constituição que dizem respeito à comunicação social eletrônica, ou seja, criar regras para que o jogo democrático possa ser jogado de forma justa e equilibrada

 

Por Pedro Ekman*

Os primeiros desenhos de um sistema democrático talvez tenham como  melhor representação a ágora grega, uma espécie de praça pública onde a população se reunia para tomar decisões sobre os rumos que a sociedade deveria seguir. Neste espaço todos e todas poderiam expor seus argumentos, ouvir ponderações e pontos de vista contrários e tomar decisões de forma livre, votando segundo as suas próprias convicções e interpretação dos fatos. Em uma sociedade como a que se vive no Brasil em 2015, tomar decisões em praça pública com centenas de milhões de pessoas ao mesmo tempo não é algo factível. Talvez a internet um dia permita isso, mas com o nível de inclusão digital atual ainda estamos longe deste cenário.

Para resolver o problema da impossibilidade de reunir todos fisicamente em um espaço público comum para tomar decisões sobre o país, inventamos dois instrumentos: o sistema de representação política e a comunicação social eletrônica, ambos descritos e definidos na Constituição Federal. O Congresso Nacional passa a ser a praça pública de debates onde participam com direito a voto os representantes eleitos. O rádio e a TV passam a organizar o debate feito pelos milhões de brasileiros em um território nacional de dimensões continentais. Através do debate feito pela comunicação social, difundida por meios eletrônicos como o rádio e a TV, a sociedade se informa para tomar decisões elegendo representantes e saindo às ruas para protestar contra o que percebe estar errado.

Tanto o Congresso Nacional como os canais de rádio e TV são espaços públicos. A Constituição Federal fez questão de os definir assim, pois são espaços estruturantes do sistema democrático representativo. O problema é que a política brasileira, seguindo a tradição latino-americana, privatizou o espaço público ao longo de sua história, entregando o debate aos interesses privados em detrimento dos interesses públicos e republicanos. Os representantes do parlamento são eleitos com campanhas milionárias financiadas por corporações que passam a ter seus interesses verdadeiramente representados no Congresso. As cédulas de dólares e reais substituem a cédula de votação em importância, corrompendo a estrutura do sistema. Os canais de rádio e TV são entregues à poucas empresas privadas que definem o debate político e cultural do país.

A democracia existe no papel, mas não se realiza na prática. O artigo 220 da Constituição Federal define que não pode haver monopólio ou oligopólio na comunicação social eletrônica. A Globo, no entanto, controla cerca de 70% do mercado, faturando sozinha mais do que todas as demais empresas de comunicação. Isso acontece porque o Congresso nunca elaborou leis que definissem os meios pelos quais se impediria o monopólio de se formar. E por que o Congresso tem sido omisso nas suas obrigações? A artigo 54 da mesma carta magna determina que deputados e senadores não podem ser donos de concessionárias de serviço público (canais de rádio e TV são serviços públicos prestados também por empresas privadas). Porém, a família Sarney e os senadores Fernando Collor, Aécio Neves, Agripino Maia e Edson Lobão Filho são apenas alguns exemplos das dezenas  de parlamentares que controlam canais de rádio e TV em seus estados.

Criar as leis que tornem viáveis os objetivos constitucionais é justamente o que se chama de regulamentar a Constituição. Regular a mídia nada mais é do que regulamentar os artigos da Constituição Federal que dizem respeito à comunicação social eletrônica, ou seja, criar regras para que o jogo democrático possa ser jogado de forma justa e equilibrada. Congressistas e grandes emissoras de TV, no entanto, definem a regulação da mídia como cerceamento da liberdade de expressão e como um ataque de um suposto governo autoritário que quer impedir críticas à sua gestão. Isso acontece por que as corporações de mídia, ao reconhecerem a possibilidade de um cenário em que terão que dividir o bolo que sempre comeram sozinhos com o resto da sociedade, atacam a proposta incitando o medo na sociedade para que ela também reaja contra a proposta.

Para se ter uma ideia do impacto da concentração de mercado no debate público, podemos analisar a discussão que ocorre neste momento no Congresso Nacional sobre a possibilidade da redução da maioridade penal. Como será a reação de uma sociedade que é bombardeada diariamente por programas policialescos e telejornais que veiculam crimes cruéis supostamente cometidos por adolescentes sem sequer preservar o direito constitucional de presunção da inocência? Com adolescentes condenados pela praça pública da TV, a sociedade se vê impelida a votar pela redução da maioridade penal, pois esse que parece ser o caminho razoável a se tomar diante dos fatos que foram selecionados para serem apresentados ao debate.

Na maioria das vezes o mais importante não é o que se comunica, mas aquilo que se deixa de comunicar. Recentemente as redes sociais foram surpreendidas por uma notícia que foi ao ar com uma nota do jornalista ao editor que dizia “Podemos tirar, se achar melhor” após um trecho da reportagem que ligava o esquema de corrupção da Petrobras ao governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O diálogo entre um jornalista e um editor é algo absolutamente trivial, mas, ao expor a preferência de se colocar em debate público algumas informações e não outras, a sociedade se pôs a pensar quantas notas ela deixou de ver e quantas informações ela simplesmente não tomou conhecimento para poder debater. O fato de que a mídia tem lado, posicionamento e opinião contraria o discurso corrente de que os meios são técnicos e sempre optam pela melhor forma de informar. Tendo isso claro, fica mais fácil perceber que um cenário de mercado altamente concentrado – no qual apenas uns poucos empresários decidem o que toda a sociedade vai debater – é mortal para uma sociedade que se pretende democrática.

Regular a mídia não é censura e nem coisa de comunista. Países não comunistas como a Inglaterra, a França, a Alemanha e até os Estados Unidos regulam a mídia de maneiras mais determinadas que o Brasil. É importante lembrar que o Brasil também regula a mídia, que não se está inventando um assunto novo, apenas o fazemos de forma absolutamente insuficiente. Enquanto os donos do The New York Times, por exemplo, não podem ser os mesmos donos de uma emissora de TV em Nova York – porque a regulação americana coloca limites à propriedade cruzada dos meios de comunicação proibindo a formação de oligopólios –, no Brasil os donos da Globo podem ter canais de TV, de rádio, jornais, editoras, gravadoras e outros tantos veículos sem qualquer limite. Se no Brasil as emissoras de TV questionam na justiça a classificação indicativa (regulação de conteúdo e não de mercado) que existe para proteger a infância de conteúdos impróprios, na Suécia a publicidade voltada para crianças é proibida de ir ao ar. Estados Unidos e Suécia estão longe do projeto comunista e nem por isso definem regulação da mídia como censura.

Entendendo que a solução do problema não virá espontaneamente do Congresso e cansada de esperar um governo que decida enfrentar a questão, a sociedade civil brasileira decidiu elaborar um projeto de lei de iniciativa popular que regulamente a Constituição nos temas da comunicação social eletrônica. Para ajudar a sociedade brasileira a conseguir fazer esse debate de forma mais qualificada do que ela faria se só tivesse a informação produzida pelos grande meios de comunicação, o Intervozes decidiu também produzir um documentário sobre como é feita a regulação da mídia em todo o mundo.

A sociedade pode assinar o projeto de lei e apoiar a produção do filme. Se, mesmo com todo o esforço da sociedade civil para pautar e debater o assunto, ele não aparece na TV e no rádio, é porque certamente alguém achou melhor tirar.

 

*Pedro Ekman é membro da Coordenação Executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social (www.intervozes.org.br)

 

BRASIL OBSERVER – EDIÇÃO 26