Sei que já há por aí trocentos textões sobre o filme “Que horas ela volta?”.
Me dá uma licencinha que aqui vai mais um.
É que o filme é tão bom, tão marcante, que não posso abrir mão de deixar registradas impressões neste espaço.
“Que horas ela volta?” é um primor enquanto produção audiovisual, enquanto produção cinematográfica.
E é extraordinário pelo seu conteúdo.
O elenco, de atuação espetacular.
É dum realismo impressionante.
Ajuda muito, claro, o roteiro, de Anna Muylaert.
Diálogos verossímeis, situações envolventes.
Uma cena melhor que a outra.
Cito duas, em especial: a do jogo de xícaras e a do final.
Os enquadramentos ajudam muito a reforçar o ponto de vista da história.
Repare, por exemplo, que mesmo quando o acontecimento se passa em outro ambiente, como na sala de jantar, a cozinha é o ponto de observação.
Porque o propósito do filme é este: contar a vida da empregada doméstica pelo olhar, pelo sentir, pelo falar da empregada doméstica.
Tudo de forma natural, leve, sem ser panfletário, mas também sem deixar de tocar nas feridas.
Parece óbvio, entretanto é algo raro de acontecer.
Agora, o que faz “Que horas ela volta?” entrar para a história é o tema.
O filme conseguiu, ao retratar o mundo de Val, a emprega, sintetizar o que é o Brasil hoje.
Mostrar os conflitos do convívio (ou tentativa de) entre uma elite – mal acostumada a tratar os outros como serviçais – e esses outros.
Estes outros, cada vez mais a conquistar direitos e a contestar hábitos seculares.
“Que horas ela volta?” conseguiu resumir as transformações do país nestes últimos anos e como essas transformações não são bem digeridas por todos.
Pode soar trivial hoje a filha de uma empregada doméstica viajar de Pernambuco para São Paulo de avião. Pode não soar tão absurdo hoje a filha de uma empregada doméstica ter condições de fazer uma faculdade – mais ainda, uma faculdade de Arquitetura.
Às vezes a gente se esquece, ou muitos nem sabem porque eram pequenos, mas até dez, 12 anos atrás isso era raro, porque era difícil, inacessível, inalcansável. Coisa só de filme mesmo.
De um modo e de outro, e do jeito que deu, o Brasil conseguiu reduzir as desigualdades, ampliar o acesso aos direitos. Evidente que estamos longe do ideal, porém estamos mais longe ainda do caos.
É fato, mas muita gente não enxerga. Ou vê, mas não quer aceitar.
A cena em que Val (Regina Casé) conta à família da patroa que a filha Jéssica (Camila Márdila) passou na primeira fase do vestibular é bem ilustrativa.
A família percebe que os tempos mudaram. Não deixam de cumprimentar a empregada. Não conseguem esconder, entretanto, o inconformismo.
“Que horas ela volta?” é o filme que o Brasil indicou para concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
Não dou muita bola pra Oscar, mas se a “academia” premiar a obra, estará se redimindo. Se não, atesta sua falta de credibilidade.
Confere aí se o filme tá em cartaz em sua cidade, e aproveita, vai ver.
Por @waasantista, de Curitiba | Fotos: Divulgação