Muitas mulheres em Cora Coralina

Brasil Observer - mai 16 2017
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Espetáculo em São Paulo conta trajetória da escritora goiana

 

Por Vitor Nuzzi

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas era o nome de batismo de Cora Coralina, “coração vermelho”, escritora, poetisa, doceira, engajada, solidária aos deserdados da sociedade, que morreu em 10 de abril de 1985, perto de completar 96 anos. Em abril passado, véspera dos 32 anos de sua morte, um espetáculo em São Paulo – estado onde ela viveu durante 45 anos – contou um pouco da história da mulher nascida em Cidade de Goiás (GO), buscando recriar o ambiente em que vivia, com direito a doce feito ao vivo e à presença de Vicência Bretas Tahan, filha caçula de Cora. Vicência, única viva dos filhos, é educadora aposentada.

‘Cora Dentro de Mim – Plantando Roseiras & Fazendo Doces’ é o nome do espetáculo apresentado pela atriz e escritora maranhense Lília Diniz. Já são 17 anos de estrada, período em que foi visto por 10 mil pessoas. A história começa com o poema ‘Todas as Vidas’ (leia ao lado), dado a Lília por uma amiga que havia visitado o museu de Cora na cidade goiana. Fascinada, andou com o texto durante três anos na bolsa, um dia musicou e recitou – e começou a entrar no universo lírico de Cora, uma das criadoras, em 1907, do jornal A Rosa, dirigido só por mulheres.

“O que me aproximou da Cora foi a simplicidade dos versos, com a profundidade que tem, e da maneira apaixonada que ela fala da sua gente, das coisas simples da vida”, conta a atriz, que mora no Distrito Federal. “Até então, eu não conhecia o lado guerreiro dela, das lutas. Só depois de ler o livro da Vicência (‘Cora Coragem, Cora Poesia’) me deparei com outra Cora, mudei a maneira de interpretar seus poemas”.

Muitas mulheres são Cora, no enfrentamento do preconceito, na luta por independência. “Ao assumir a defesa das prostitutas, das lavadeiras, das mulheres obscuras, ela se coloca de igual para igual”, diz Lília. “Ela serve de espelho para que outras mulheres possam enfrentar as demais formas de violência que a gente vem enfrentando ao longo da nossa existência. Essas mulheres habitam Cora, como essas mulheres habitam tantas outras mulheres que vão à luta, vão à frente desafiando o seu tempo”.

 

CULTURA POPULAR

Saída do interior do Maranhão, ela aprendeu a ler com a literatura de cordel. Também teve estímulo da avó professora. A distração das crianças era ouvir rádio. “Fui me envolvendo com questões artísticas desde pequenininha, com apresentações na igreja, na escola, movimento teatral no Rio Grande do Norte, paródias, textos de teatro”, lembra Lília, que nasceu em Tuntum e foi criada em Imperatriz. Já no estado potiguar se aproximou dos repentistas. “Quando cheguei a Brasília, já tinha esse contato com a literatura e com a cultura popular”.

Ela fala com admiração de Cora, de sua postura ao enfrentar preconceitos, do envolvimento em movimentos políticos e artísticos, como a Semana de Arte Moderna de 1922, sua participação em causas sociais. “Aos 15 anos, já participava de reuniões, representando as mulheres silenciadas. Foge com o amor de sua vida, Cantídio (para o interior paulista; era um homem mais velho e separado, com quem se casaria em 1925). Ela serve de espelho para que outras mulheres possam enfrentar as demais formas de violência que a gente vem enfrentando”.

A montagem do espetáculo foi lenta, começou com ‘Todas as Vidas’ e foi agregando fragmentos de poemas e contos. Manteve elementos como a cozinha, onde durante a apresentação é feito um doce de banana. “O espetáculo tem algumas mudanças, e provavelmente é por isso que ele vem me movimentando, que eu continuo apaixonada por ele”, diz Lília, que na atual montagem assina a direção. Em cena, ela é acompanhada por dois músicos, Léo Terra Oliveira e Maísa Arantes de Amorim.

“Tem muito a ver com a memória que eu tenho da minha mãe, com as mulheres que têm na cozinha o seu labor, as conversas. As pessoas relatam muito que lembram da avó, da tia do interior…”, conta a atriz.

Lília diz, rindo, que não chegou a experimentar doces feitos pela própria Cora, chamados de “sublimes e divinos” por Jorge Amado, em 1975. “Muitas pessoas que provaram disseram que os doces eram maravilhosos. Ela vendia o doce e aproveitava para falar uma poesia para vender o livro”. A autora observa que Cora disse ser mais doceira, cozinheira, do que escritora. Será? “Esses dois ofícios, juntinhos, tinham uma alquimia, a gente pode dizer que se complementam”.

 

SEM SE ENTREGAR

Para a criadora do espetáculo, provavelmente por fazer uma “opção de classe”, Cora tenha sido desprezada pela elite goiana. Dificuldades na infância podem ter servido de estímulo ao seu engajamento social posterior, sua opção pelos marginalizados. “A opção talvez tenha a ver com seus próprios sofreres na busca de afirmação como mulher, escritora, pensadora”, acredita Lília, comentando, no entanto, que mesmo diante de dificuldades Cora sempre foi otimista e não reclamava. “Essa é uma das imagens mais fortes que eu tenho dela: a de quem não se entrega e vai para a ação”, afirma.

Ela também acredita que ainda falta conhecimento sobre a obra de Cora Coralina, inclusive por uma parte da academia. Lília conta episódio de alguns anos atrás, após fazer uma apresentação em uma universidade federal. Um diretor reclamou, posteriormente, dos gastos para realizar um sarau sobre uma “escritorazinha”. “Existe muito preconceito, muitas pessoas não se debruçam sobre a obra dela”.

Mas o tempo atual é ainda mais propício para isso, para a poesia. “Vivemos tempos duros, difíceis, de negação a uma série de direitos, de ataques à classe trabalhadora. A poesia tem essa capacidade de nos fazer refletir, de perceber a beleza mesmo diante do caos, mesmo diante do medo. De perceber a poética da vida”, reflete. É possível buscar saídas. “Basta que a gente observe, perceba e vá fazer o que tem de ser feito, que é lutar sempre”.

 

  • Artigo publicado originalmente por Rede Brasil Atual (www.redebrasilatual.com.br)

 

Todas as Vidas

(Cora Coralina)

 

Vive dentro de mim

uma cabocla velha

de mau-olhado,

acocorada ao pé do borralho,

olhando pra o fogo.

Benze quebranto.

Bota feitiço…

Ogum. Orixá.

Macumba, terreiro.

Ogã, pai-de-santo…

 

Vive dentro de mim

a lavadeira do Rio Vermelho,

Seu cheiro gostoso

d’água e sabão.

Rodilha de pano.

Trouxa de roupa,

pedra de anil.

Sua coroa verde de são-caetano.

 

Vive dentro de mim

a mulher cozinheira.

Pimenta e cebola.

Quitute bem feito.

Panela de barro.

Taipa de lenha.

Cozinha antiga

toda pretinha.

Bem cacheada de picumã.

Pedra pontuda.

Cumbuco de coco.

Pisando alho-sal.

 

Vive dentro de mim

a mulher do povo.

Bem proletária.

Bem linguaruda,

desabusada, sem preconceitos,

de casca-grossa,

de chinelinha,

e filharada.

 

Vive dentro de mim

a mulher roceira.

– Enxerto da terra,

meio casmurra.

Trabalhadeira.

Madrugadeira.

Analfabeta.

De pé no chão.

Bem parideira.

Bem criadeira.

Seus doze filhos.

Seus vinte netos.

 

Vive dentro de mim

a mulher da vida.

Minha irmãzinha…

tão desprezada,

tão murmurada…

Fingindo alegre seu triste fado.

 

Todas as vidas dentro de mim:

Na minha vida –

a vida mera das obscuras.

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