Emicida: ‘Faço música com esse caos dentro de mim’

Brasil Observer - ago 14 2017
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(Read in English)

 

Rapper de São Paulo conversa com exclusividade com a equipe do Brasil Observer em Londres

 

Por Guilherme Reis

Faltava pouco mais de uma hora para Emicida subir ao palco da casa Kamio, em Old Street, na noite de 21 de julho, quando seu irmão, o também cantor Fioti, conduziu a equipe do Brasil Observer ao modesto camarim usado pelo rapper de São Paulo e sua banda. Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, portava seus óculos escuros e parecia totalmente em casa, conversando de forma relaxada, embora estivesse no “corre” – chegara de Lisboa no final da tarde e no dia seguinte embarcaria para a Alemanha, na sequência de mais uma turnê pelo continente europeu.

Emicida já dispensa maiores apresentações. Trata-se de um dos rappers de maior sucesso atualmente no Brasil. Suas letras afiadas tratam do universo desigual e cascudo da maior cidade brasileira, tocando em temas como racismo, por exemplo, mas também exploram assuntos diversos, como o amor e as raízes africanas, com melodias que vão do rap ao pop.

O show do mês passado não foi o melhor que o cantor já fez em Londres. Para este jornalista, que já teve a oportunidade de conferir quatro apresentações do rapper na capital inglesa, a melhor aconteceu em 2015, no Rich Mix, quando ele ainda não tinha lançado o disco atual. De qualquer maneira, valeu muito o ingresso. Emicida traz muita energia ao palco, que pode ser ainda mais sentida em casas pequenas como a Kamio. Carlos Café (percussão), Doni Jr. (violão, guitarra, cavaco e percussão) e DJ Nyack fecharam a banda mostrando muito entrosamento.

O ponto alto se deu na música ‘Mandume’: “Eles querem que alguém / Que vem de onde nóiz vem / Seja mais humilde, baixa a cabeça / Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda / Eu quero é que eles se…”.

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Confira a seguir a entrevista:

 

Quando tive a oportunidade de te entrevistar em 2012, depois de um show à beira do Tâmisa, no festival Back2Black, você disse que tocar no exterior era como voltar ao início da carreira, pois você se apresentava para públicos menores que não conheciam necessariamente suas músicas. Cinco anos depois, isso mudou?

Mudou um pouco porque você passa a se apropriar do lugar onde você está. Quando você vai quatro, cinco vezes para uma determinada cidade você começa a entender um pouco mais como as pessoas se comportam ali, o tipo de música que funciona melhor naquele lugar, então isso faz com que a gente se torne mais local. Por outro lado, a gente não tem um trabalho constante em cada uma dessas cidades da Europa por onde a gente passa, a gente continua sendo um grupo visitante, então a gente entra nesse circuito das músicas do mundo. Eu não estou competindo com os artistas locais que fazem rap aqui. Nesse aspecto, acho que essa energia do começo se perpetua. No ano passado, pela primeira vez, a gente conseguiu lançar um álbum oficialmente na Europa [Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, pela Sterns Music], e isso solidifica muito a relação, aí você vê que tem um público daqui que não necessariamente entende a língua, mas vai ao concerto. Lançamos com as letras traduzidas, então tem o interesse sobre o que aquela poesia está falando. Além disso, com o passar dos anos, a comunidade brasileira, que num primeiro momento não conhecia a gente, passou a conhecer porque a carreira vai se desenvolvendo no Brasil, então a rapaziada cola no show na intenção de ouvir um som e também matar um pouco a saudade. Tem o lance de ouvir sua língua mãe, o idioma é uma espécie de pátria.

 

Na edição passada publicamos uma entrevista com o BNegão. Ele disse que o Brasil vive musicalmente um dos melhores momentos das últimas décadas, o que tem se refletido na quantidade de artistas brasileiros que se apresenta na Europa. Você concorda?

Sim, acho que sim. E tem alguns fatores que reverberam aqui fora que é o seguinte: a internet democratizou muita coisa, transformou tanto a produção quanto o consumo em algo mais horizontal, então os guetos foram se dissipando, hoje você encontra um moleque que mora em Alphaville cantando o rap mais pesado, mais criminal, que às vezes não tem nada a ver com a realidade dele; da mesma maneira, você vai ver um favelado fã de Imagine Dragons, e isso é muito foda porque as pessoas vão se conectando de acordo com as músicas que elas se identificam, e não só pela identificação do grupo. O que acontece também é que o perfil do brasileiro no exterior foi se alterando, e isso criou uma demanda que talvez antes não existisse, tem uma busca por coisas mais alternativas. E tem outra parada muito louca, a minha geração e a geração que veio antes de mim colhem frutos que foram plantados pela rapaziada do samba e da bossa nova nos anos 1960 e 1970. O Brasil tem um respeito muito grande no âmbito musical e eu sinto que fora está todo mundo muito curioso sobre o que a gente está criando, porque o Brasil já contribuiu pra caralho culturalmente com o planeta. Não tem lugar no mundo que não saibam quem é Tom Jobim, João Gilberto, Elis Regina, Jorge Ben… Então a gente colhe o axé desses caras até hoje.

 

E o que você tem ouvido ultimamente? Eu estava curioso pra saber se você gostou do disco novo de samba do Criolo…  

Cara, eu escutei algumas vezes e gostei porque eu acho o Criolo doido, ele podia manter o “doido” no nome. É um momento muito importante, o que ele fez é simbólico, assumir o samba na linha de frente. O samba está fazendo 100 anos e, pela primeira vez, o samba não está entre as 100 músicas mais ouvidas no Brasil. Isso é muito perigoso para um gênero que é a alma do Brasil. Então eu acho que o Criolo foi cirúrgico nessa iniciativa de pegar o público dele, jovem, que não necessariamente está próximo disso, e falar “hoje nós vamos falar sobre samba”. O que eu tenho ouvido de lá: Baiana System, Mahmundi, um moleque novo do rap que chama Coruja BC1… São os que passeiam mais pela minha playlist.

 

Dei uma procurada no que os sites gringos estavam falando sobre você e o Rhythm Passport dizia o seguinte: “o MC de São Paulo amadureceu, polindo suas músicas e absorvendo influências mais tradicionais, mas sua língua continua afiada”. É isso aí mesmo?

A raposa perde o pelo, mas não perde o faro [risos]. Eu penso que meu texto é muito valioso, dar a minha perspectiva sobre aquele assunto. Eu cresci ouvindo uma rapaziada tipo Belchior, que era um letrista foda. Gil, Caetano… São letristas incríveis, Martinho da Vila, Zé Ketti, Cartola, Adoniram Barbosa… Então isso das referências vai nesse sentido. Existem mil formas de trabalhar o mesmo tema. E o que une essas formas? Assim como no dia a dia das pessoas, um disco passa por vários estados de espírito. Tem dia que você acorda puto, 15 minutos depois você está feliz, 20 minutos depois você está deprimido, três horas depois é o melhor dia da sua vida e você vai dormir em dúvida se está no caminho certo. E eu faço música com esse caos dentro de mim.

 

Você sente saudade de fazer umas batalhas de MCs?

Sinto. Mas sinto que sai no momento certo. Eu tinha outra expectativa, outro sonho, eu queria cantar as coisas que eu escrevia. Só que eu tinha uma aptidão pras batalhas, eu era muito sem noção também, porque as batalhas eram um concurso de bullying, você sobe lá pra ser xingado, então várias vezes eu desci do palco e pensei “nossa, isso não se fala”. Mas eu sinto saudade porque a energia das batalhas é foda.

 

Estamos aqui a poucas horas de seu show… O que normalmente rola nesse momento? Rola um ritual, alguma concentração?

O que a gente faz é ficar aqui conversando, tirando uma onda, dando uma risada, uma descansada… Porque daqui a pouco a gente vai ter que subir ali e se esguelhar pra caralho! O bom aqui é essa energia leve.

 

E tem rolado muito “Fora Temer” nos shows?

Nos que têm muitos brasileiros sim.

 

E como você está sentindo esse momento do Brasil?

Eu sinceramente não estou surpreso com nada. Minha expectativa era exatamente isso que está acontecendo. Por isso me posicionei contra [o impeachment de Dilma Rousseff]. Não é uma brincadeira, o impeachment não é um curativo, é quebrar uma coisa muito grande. Abriu um precedente perigoso. Passa a ter esse golpe burocrático, institucional. Todas as reformas não estão sendo propostas, estão sendo impostas. Agora as pessoas estão começando a entender, mas estão apáticas. É como o Chico Buarque falou, é “um pote até aqui de mágoas”, então uma gota pode fazer transbordar. O Temer está brincando com pólvora.

 

Você acha que pode haver uma revolta popular?

Acho pouco provável. A teia foi muito bem construída. O povo não é organizado, o povo não luta pelo povo. As próprias manifestações de 2013 são uma prova disso. Aquele moleque, o Rafael Braga, foi preso e está na cadeia até hoje, e o país não se mobilizou pra tirar ele de lá. As pessoas protestam como se fosse sem terceira pessoa. Protestam pra mostrar como são legais e engajados, não porque tem um problema sério. Isso é foda porque está todo mundo com a corda no pescoço.

 

Pra finalizar, quando chega o próximo disco?

Não sei. Eu tenho um pensamento que a cada disco eu viro um novo artista. Então agora estou mirando numa coisa mais espiritual, nessa coisa do silêncio. É meio contraditório um músico falar que está se inspirando no silêncio, mas eu tenho viajado muito nessa coisa da calmaria. Talvez o próximo disco vá para esse sentido. Eu vou conduzindo várias pesquisas, várias linhas de raciocínio e tentando entender o que eu poderia falar pro Brasil agora. Estou tentando no meio desse caos, aonde a política também entra, ler e falar a língua das pessoas. O último disco me mostrou que a gente tem muito mais semelhanças do que diferenças, um disco sobre a África conectou todo mundo, todo mundo vira um. Eu quero chegar nessa mesma sintonia, só que um tema diferente.