As ondas de inclusão na A. do Sul

Brasil Observer - jul 19 2017
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Ocupação em Carapicuíba, São Paulo. (Foto: Mídia Ninja).

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A ideia de uma ‘guinada à esquerda’ diz pouco sobre a ascensão e queda dos partidos de esquerda hoje e ao longo da história na América Latina. Embora os atores e os espaços mudem com o tempo, a chave é entender as sucessivas demandas por inclusão a partir dos seguimentos mais pobres da sociedade, argumenta Federico M. Rossi  

 

Como explicar os eventos experimentados na região nos últimos vinte anos a partir de uma perspectiva histórica de longo prazo? A definição mais comum é de que ocorreu uma “guinada à esquerda” na Argentina, na Bolívia, no Brasil, no Equador e na Venezuela. Mas este conceito apenas destaca uma conexão vaga entre diversos governos de esquerda, deixando sem explicações diversas dinâmicas políticas e econômicas. Para compreender os principais processos transformadores por trás da virada à esquerda sul-americana, precisamos retornar à história de conflitos redistributivos e analisar o que eu chamo de “ondas de inclusão”.

As ondas de inclusão são grandes e prolongados processos históricos de luta entre grupos socioeconômicos e políticos que competem ou para manter uma política baseada em uma relação íntima com o poder econômico, ou para pressionar (às vezes de baixo) a expansão desta política para incluir os pobres como cidadãos e trabalhadores. Em todo o período da história da América Latina, houve apenas duas ondas de inclusão dos segmentos mais pobres da sociedade.

A primeira onda foi um processo corporativista que combinou mobilização popular de movimentos trabalhistas e/ou camponeses com políticas de institucionalização das reivindicações nas décadas de 1930 a 1950. A primeira inclusão na América Latina foi definida por Ruth Berins Collier e David Collier em ‘Shaping the Political Arena’ como “a primeira tentativa sustentada e parcialmente bem-sucedida do Estado de legitimar e moldar um movimento trabalhista institucionalizado”.

Isso foi alcançado com políticas sociais que atenderam às reivindicações de setores populares cada vez mais sindicalizados. No Brasil, a inclusão foi realizada para fins de desmobilização, enquanto na Bolívia, na Venezuela e na Argentina implicou a mobilização do movimento trabalhista. Na Bolívia e na Venezuela, esta primeira onda também incluiu camponeses, enquanto no Equador foi realizada por um regime reformista militar e envolveu um fraco movimento trabalhista.

Golpes de estado colocam fim à primeira onda de inclusão na maioria dos países latino-americanos. Na Argentina, por exemplo, a fase de inclusão terminou com o golpe de 1955, levando a um período de tensão entre peronistas e outros atores políticos, bem como vários outros golpes de estado. Em 1976, mais um golpe iniciou um processo sistemático de exclusão ou “desincorporação” dos setores populares por regimes militares autoritários e reformas neoliberais democráticas, que duraram até o início dos anos 2000.

Essa fase de golpes e desincorporação neoliberal não foi exclusiva da Argentina. Na maioria dos países, a desincorporação foi combatida por movimentos sociais que mobilizaram setores populares, como camponeses sem terra no Brasil, indígenas na Bolívia e Equador e desempregados na Argentina. Essas interrupções acumuladas constituíram um enorme ciclo continental de protestos contra as consequências de exclusão das reformas neoliberais.

A segunda grande redefinição da arena sociopolítica na América Latina começou no final da década de 1990. Esta segunda onda de incorporação é um processo com base territorial que emerge de uma acumulação de transformações projetadas para responder às demandas populares de inclusão. A chegada de partidos de esquerda ou populistas ao governo é um dos subprodutos de duas décadas de luta pela reincorporação.

Cada onda de incorporação tem sido associada a diferentes tipos de movimentos populares que lideram os esforços para a mudança social. Durante o período liberal (1870-1930) que precedeu a primeira onda de inclusão (1930-1950), os movimentos trabalhistas e camponeses eram as principais organizações dos setores populares em favor de suas demandas de bem-estar através da reforma ou da revolução. Na segunda incorporação (2000-2010), o período neoliberal anterior (1970s-1990) viu um novo tipo de movimento se tornar o ator popular central na reversão das consequências de exclusão do autoritarismo e do neoliberalismo: movimentos de reincorporação. Os movimentos de reintegração se basearam em atores trabalhistas, organizando os pobres e marginalizados territorialmente.

Há uma dinâmica recorrente à inclusão, e ambas as ondas apresentam pontos comuns em termos de etapas que levam à incorporação. Como consequência do (neo)liberalismo surgiu uma “questão social”, evoluindo em ambas as ondas para uma questão política defendida por um ator controverso gradualmente reconhecido e legitimado. Nas décadas de 1990 e 2000, o surgimento marginalização como uma nova “questão social”, reformas nas técnicas políticas e a criação de programas sociais maciços podem ser vistos como equivalentes à dinâmica pré-incorporação.

Entre os anos 1870 e 1950, os movimentos de esquerda, ao colocar a “questão social”, levaram as elites liberais a aumentar a repressão. Isso gradualmente levou a lideranças populistas ou esquerdistas que inicialmente reconheceram demandas por direitos sociais e, depois, também os atores por trás dessas reivindicações, a saber, movimentos trabalhistas e camponeses. Quanto às políticas sociais, a primeira onda viu a criação de Ministérios do Trabalho ou Assuntos Camponeses, reforma agrária (exceto na Argentina), políticas de direitos sociais e reformas constitucionais. A segunda onda também fez surgir novos ministérios, como o Ministério do Desenvolvimento Agrário no Brasil ou o Ministério do Desenvolvimento Social na Argentina; reformas constitucionais na Bolívia, no Equador e na Venezuela; reforma agrária na Bolívia e na Venezuela; e a produção de políticas abrangentes de transferência de renda em todos os cinco países.

Embora a primeira onda de inclusão tenha sido caracterizada por sindicalização maciça e acordos estatais corporativos, a segunda incorporação seguiu uma lógica territorial. Esta segunda onda é “territorial” porque a incorporação de setores populares ocorreu predominantemente através de instituições criadas ou reformuladas para a articulação de atores fora do sistema sindical. Em vez disso, uma vez que as reformas neoliberais e os regimes autoritários tinham acordos neo-corporativistas enfraquecidos ou dissolvidos para resolver conflitos sócio-políticos, as ocupações de terras urbanas e rurais, bairros e favelas tornaram-se espaços centrais para a reivindicação dos pobres organizados.

Pelo mesmo motivo, as políticas sociais associadas a essa reincorporação foram definidas pela localização física dos pobres em vez de por classe ou ocupação. Em muitos casos, as políticas de reincorporação foram canalizadas através de instituições recém-criadas ou redefinidas. Por exemplo, os “territórios cidadãos” no Brasil, as “missões sociais” na Venezuela e a articulação de movimentos através de conselhos sociais que canalizam múltiplas reivindicações não corporativas na Argentina, na Bolívia e no Brasil. Esta foi uma mudança importante da lógica funcionalista do corporativismo, que articulou as reivindicações dos setores populares tomando os sindicatos como seu único representante e Ministérios do Trabalho como seu departamento de estado dedicado.

Para o futuro, os eventos recentes na região podem sinalizar três caminhos críticos para a segunda onda de incorporação. O golpe no Brasil, a eleição de neoliberais na Argentina e as violentas tensões na Venezuela podem indicar o fim da segunda onda. No entanto, a segunda incorporação continua no Equador com a eleição do candidato oficial e na Bolívia devido ao apoio permanente ao governo. É cedo demais para dizer com certeza se alguns países entraram em uma segunda onda de desincorporação ou se a situação atual é apenas uma breve paralisação na longa história latino-americana de conflitos redistributivos.

 

  • Dr. Federico M. Rossi é professor de pesquisa do CONICET na Escola de Política e Governo, Universidade Nacional de San Martín, Argentina, e é PhD pelo Instituto Universitário Europeu. Foi pesquisador visitante da Universidade de Nova York, da Universidade de Brasília e da Universidade de Gerenciamento de Singapura, bem como pós-doutorado na Universidade de Tulane e no Instituto Universitário Europeu. Ele é o co-editor de ‘Social Movement Dynamics: New Perspectives on Theory and Research from Latin America’ (Routledge, 2015) e autor de ‘The Poor’s Struggle for Political Incorporation’ (Cambridge University Press, 2017).