Anita Malfatti: 100 anos da exposição que alteraria o curso da história da arte no Brasil

Brasil Observer - mar 17 2017
BO_16.17_C
‘Samba’ (1943)

(Read in English)

 

O olhar de Malfatti abriu a cabeça de muitos críticos de arte para o novo, ao mesmo tempo explodiu a de outros mais ortodoxos e extremamente conservadores

 

Por Márcio Apolinário e Jefferson Gonçalves

Fazer um tour por São Paulo é bem mais bacana se for possível sentir sua alma. “Anita Malfatti: 100 anos de arte moderna” é um convite da cidade para que as obras da mulher que inspirou a Semana da Arte de 1922, berço do movimento modernista no Brasil, sejam visitadas e apreciadas.

O evento que começou no dia 8 de fevereiro e segue até 30 de abril, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, não se trata apenas de um retorno ao passado. Quem procura sentir a importância cultural que a artista traz com sua linguagem expressionista, ainda tão contemporânea, vai se deixar levar por um aspecto tão plural e importante de uma forma que mostrará a cidade que nunca dorme em outros tons, além do cinza que já faz parte da impressão que São Paulo causa.

Há um século, quem participava da inauguração da “Exposição de pintura moderna Anita Malfatti” mal fazia ideia que estava no centro daquilo que transformaria o curso da história da arte no Brasil, promovendo os pensamentos que acabaram por trazer as novas tendências da arte na Europa para bater de frente com a elite paulistana, acostumada a consumir a estética europeia mais conservadora.

A pintora e professora brasileira Anita Catarina Malfatti, filha de um italiano e uma norte-americana, nasceu na cidade de São Paulo no ano de 1889. Ela, segunda filha do casal Samuelle Malfatti e Eleonora Elizabeth Krug (ou Betty Krug, como era mais conhecida), veio ter contato com as telas após o falecimento de seu pai, quando a mãe passou a dar aulas de pintura e desenho para sustentar a família. Anita acompanhava todas as aulas e isso começou a tomar o seu tempo, sendo Betty a primeira influência nos fundamentos das artes plásticas.

O talento de Anita anexado à sua visão de vanguarda capta e exprime sensações com seus traços e cores. As inovações europeias começam as fervilhar na sua mente e, das obras criadas por Malfatti, as paisagens são sem dúvida um dos atrativos que mais impressionam.

O impacto que a arte de vanguarda teve sobre a paulistana durante o período de aprendizado na Alemanha (1910-1913) e nos Estados Unidos (1914-1916) criou a ponte para as revoluções filosóficas na arte e na literatura anos mais tarde. Mas, em 1917, esta que era a segunda exposição da vida de Anita Malfatti trazia construções com manchas de cores fortes e contrastantes, os retratos expressivos e desconstruídos, os enquadramentos completamente incomuns, as deformações físicas dos modelos pintados, as cores totalmente despadronizadas e não naturalista. Aquilo fora demais para a elite paulistana tão acostumada com pinturas acadêmicas ou muito próximas disso. O olhar de Malfatti abriu a cabeça de muitos críticos de arte para o novo, ao mesmo tempo explodiu a de outros mais ortodoxos e extremamente conservadores.

Foi isso que aconteceu ao lidarem com produções como “A estudante russa”, quadro pintado em 1915 quando Anita Malfatti estava em Berlim, e sua técnica óleo sobre tela, provocando os sentidos com as formas e cores expressionistas fora do tradicional, ou mesmo a composição “A boba”, um dos quadros mais conhecidos e notáveis da pintora (também de 1915), que ousou tanto nas cores consideradas extravagantes, quanto na técnica de tratamento pictórico, fugindo um pouco do expressionismo e flertando com algo mais cubista. Talvez o olhar distante, trazendo um vazio para o observador, cause mais incômodo do que a exuberância e as pinceladas curtas e o forte contraste utilizado pela artista.

‘O Farol’ (1915)

‘O Farol’ (1915)

‘A estudante russa’ (1915)

‘A estudante russa’ (1915)

Em um primeiro momento, a exposição fora um assombro e despertou a curiosidade na sociedade paulistana. As visitas foram mais intensas do que o esperado. Anita chegou a vender oito das suas obras. As pessoas tomavam conhecimento da arte da pintora e ficavam abismados com aquela provocação ao conceito ortodoxo e conservador de arte europeia.

Entretanto, os mais conservadores também tiveram seu ponto de destaque, porém um deles acertou a pintora em cheio. Monteiro Lobato, com a sua crítica publicada no jornal O Estado de S.Paulo “A propósito da exposição Malfatti” (ou como ficou conhecida mais tarde “Paranoia ou mistificação?”), criou uma referência negativa ao nome da artista tão forte e pesada que todos os quadros vendidos acabaram sendo devolvidos e outros quase foram destruídos.

Todas as vezes que o nome de Anita Malfatti era mencionado também era associado ao homem que criou o Sítio do Pica-pau Amarelo. Mesmo após as duras palavras do autor e da repercussão negativa, ela ainda ilustrou livros de Lobato – e, anos mais tarde, na década de 40, apresentou o programa “Desafiando os Catedráticos”, na Rádio Cultura, em companhia do próprio Monteiro Lobato e de Menotti Del Picchia.

A ideia de que a artista nunca mais se recuperaria do baque causado pela crítica se fez firme, mas a influência de sua arte moderna visionária deu asas para a “Semana da Arte Moderna de 1922”. Durante o evento, Anita Malfatti apresentou 22 obras para o cotidiano paulistano que também teve reação parecida com a sua mostra em 1917 (um misto de espanto, fascínio e curiosidade). Não de outro modo, a pintora entrara para o grupo composto pelas pessoas que defendiam as ideias da Semana da Arte Moderna (evento que promoveu o movimento modernista no Brasil). Ao lado de Anita Malfatti estavam Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade. Ficaram conhecidos como Grupo dos Cinco (da Arte Moderna Brasileira)

Um século depois da “Exposição de pintura moderna Anita Malfatti”, é hora de reapresenta-la ao mundo com as análises do modernismo sobre uma varredura mais atual e ampliada do que aquela que fora feita no passado. Afinal, é fato que a contribuição de Anita para a história da arte moderna brasileira não parou apenas nas inovações para a época a que foi apresentada (1917).

É nesse ponto que o evento “Anita Malfatti: 100 anos de arte moderna” foca. Na sensibilidade do olhar da artista, trazendo pinturas e desenhos que mostram os mais variados momentos da produção de Anita. Pontuando a percepção única da pintora para a arte em seu redor e nas variáveis do cotidiano.

A exposição vai além do conjunto expressionista que a consagrou e que serviu como estopim do modernismo no Brasil. A mostra traz paisagens e retratos de períodos que precedem até mesmo a Semana da Arte Moderna, apresentando refinadas pinturas naturalistas das décadas de 1920 e 1930, e até mesmo aquelas mais próximas à cultura popular que é possível visualizar nos trabalhos dos anos 1940 e 1950.

A inspiradora da Semana de Arte Moderna de 1922 deverá ser lembrada e celebrada quando o evento que foi o gatilho do movimento modernista brasileiro estiver completando cem anos (2022). Será também uma forma primorosa de rever o legado de Malfatti, que se estende até os dias de hoje como artista pioneira, que além de sobreviver ao conservadorismo radical da década de 1920 soube ser ousada quando entrou e revolucionou a “maneira popular” de fazer arte, nos últimos anos de vida.