‘Que Horas Ela Volta?’ traça um retrato da relação “casa-grande e senzala” que ainda existe no Brasil. “Minha abordagem não é julgar, mas mostrar a verdade de maneira crua”, diz a diretora do filme, Anna Muylaert, ao Brasil Observer
Por Gabriela Lobianco
Estreia dia 4 de setembro no circuito britânico de cinema o filme Que Horas Ela Volta? (The Second Mother, em inglês), novo longa-metragem da diretora brasileira Anna Muylaert (Durval Discos, É Proibido Fumar), e estrelado pela atriz Regina Casé, que interpreta Val. “Há uma sede de cinema de língua estrangeira de alta qualidade esse ano seguindo o sucesso de filmes como o argentino Relatos Selvagens ou do sueco Força Maior”, explicou Hannah Farr, Coordenadora de Comunicações da SODA Pictures, representante comercial e responsável pelo lançamento do filme no Reino Unido.
Antes, porém, o longa teve exibição exclusiva no dia 12 de agosto como parte integrante do Film4 Summer Screen at Somerset, um festival de cinema com projeção de películas ao ar livre que acontece por 14 dias no maravilhoso jardim neoclássico da Somerset House.
Único exemplar brasileiro da mostra e um dos poucos inéditos dessa curadoria, o filme foi o escolhido para a sessão chamada Summer Screen Spotlight, que ressalta o trabalho de um diretor de qualquer parte do mundo que seja pouco conhecido pelos ingleses. A escolha foi uma paixão à primeira vista do curador da mostra, David Cox, no Festival de Cinema de Berlim. “Não podia esperar para que outras pessoas pudessem assistir ao filme e percebi que a melhor maneira de colocar isso em prática seria exibi-lo na Somerset House. A resposta do público ao filme no festival foi tão positiva e animada que eu estou ansioso para experimentar isso de novo, embora desta vez com 2.000 pessoas em um ambiente ao ar livre”. Ele garantiu que essa pré-estreia não era uma estratégia de marketing, “embora esperemos que o boca a boca da nossa estreia ajude o filme quando for lançado em setembro”, comentou ao Brasil Observer por email.
Aclamado na Berlinale e ovacionado no Festival de Sundance, um dos mais importantes do cinema independente nos Estados Unidos, o longa-metragem angariou prêmios e surpreendeu até mesmo a diretora. “Embora estivesse segura do filme que tinha em mãos, nunca poderia imaginar o tamanho da repercussão, principalmente fora do circuito de festivais e sim, no mercado de cinema mesmo”, disse Anna Muylaert em conversa exclusiva com o Brasil Observer.
UM RETRATO DO BRASIL DIVIDIDO
A princípio, a ideia do filme é traçar um retrato social das relações de poder e afeto entre patrões e empregados na sociedade brasileira. Anna lembrou o que dizia o historiador Sérgio Buarque de Holanda: o português levou ao Brasil a ideia do “ócio em vez do negócio”. “Ou seja, aqui não fazer o serviço [doméstico] é mais valorizado que fazer o serviço”, afirmou ela. Assim, Que Horas Ela Volta? é uma obra de gênero social que discorre, com pinceladas sutis, sobre temas muito profundos e arraigados na cultura do país. São questões de um Brasil contemporâneo que ainda não abandonou suas raízes coloniais.
Essa relação “casa-grande e senzala”, para lembrar o livro de Gilberto Freyre, ainda está viva. E é na pele da empregada doméstica Val (Regina Casé) que se constata essa dinâmica. Nordestina, separada, emigrante e provavelmente analfabeta, ela trabalha há 13 anos como babá de Fabinho (Michel Joelsas), filho único de um casal de classe média alta de São Paulo, enquanto sua filha Jéssica (Camila Márdila) é criada por parentes em Pernambuco. Muylaert explica que trabalhar com Regina foi pensado, entre outras coisas, pelo tipo físico da atriz – “um espelho do sincretismo de raças no Brasil porque numa só figura ela é branca, preta e índia” –, que se encaixa perfeitamente no paradigma de classe pobre e marginalizada representada por Val.
Num primeiro momento, Val é tratada como membro da família pelos patrões, Barbara (Karine Telles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), com seu quartinho nos fundos, e os serve com disciplina exemplar e carinho. Então, a rotina da casa se quebra: a filha da empregada aparece em São Paulo para prestar vestibular. Nesse reencontro, Jéssica não compreende como a mãe se presta ao papel de serviçal ou, em suas palavras, como aceita ser tratada como “cidadã de segunda classe”. A subserviência de Val naquela casa do bairro nobre do Morumbi, cerceado pela favela de Paraisópolis, fica exposta.
Muylaert, no entanto, centra sua mise-en-scene de forma airosa e elegante, sugerindo em vez de impor, com olhares que expõem a história sem intervir ou taxar. “Minha abordagem não é julgar os personagens e suas ações, mas mostrar a verdade de maneira crua”.
Fica transparente, porém, que para a desigualdade ser perpetuada é preciso que ricos e pobres saibam quais são seus lugares e seus espaços de poder. Afinal, para bom entendedor, meia palavra…
A TERCEIRIZAÇÃO DA MATERNIDADE
O filme é a realização de um projeto de mais de 20 anos que Anna Muylaert começou à época da sua primeira gravidez. “É uma questão que nós mulheres enfrentamos: ninguém quer deixar o filho bebê, mas também não podemos abdicar de termos uma vida profissional e consequente independência financeira”, refletiu a diretora. Nesse sub tema, se descortina uma questão tão grande quanto a luta de classes exposta dentro do filme, em torno de dar a vida e cuidar da vida.
A mentalidade sexista da sociedade, no geral, ainda dita que ser mãe é algo inato a todas as mulheres, sendo que a mesma tem a responsabilidade de cuidar da cria. Segundo Anna, especialmente no Brasil, o trabalho da mãe não é valorizado: “é quase como se o filho fosse só dela; a prova disso são os baixos salários das babás”.
Num âmbito maior, isso demonstra que a sociedade estipula que o trabalho doméstico não é nobre, seja ele exercido pela mãe ou por uma empregada contratada. E, da mesma maneira que pobres e ricos tem seu papel na roda social, mulheres e homens têm funções sociais pré-estabelecidas. “Acho que nós mulheres temos que abrir essa discussão, pois estamos num mundo errôneo, construído através dos valores machistas, preocupado com os valores relevantes aos seres de sexo masculino. E dentro deste mundo a questão da educação, por exemplo, não é tão valorizada quanto deveria”, argumenta Muylaert.
A antropóloga americana Donna Goldstein, no livro Laughter out of place: race, class, violence, and sexuality in a Rio Shantytown, descreve que “é na troca afetiva entre aquelas que podem pagar pela ajuda doméstica e as [mulheres] pobres que oferecem seus serviços que as relações de classe são praticadas e reproduzidas”. Mais perverso que qualquer relação entre patrão e empregada, fica então as relações afetivas que emergem nesses laços, reforçando a hierarquia que o serviço doméstico impõe e usando das ligações amorosas, principalmente quando há crianças envolvidas no caso.
Muylaert acredita que “mais que a genética, quem educa é quem deixa as marcas mais profundas”. Nesse sentido, submerge uma dor em meu peito, pois deixo minha filha na creche em tempo integral enquanto labuto pelo pão. Espero que, como Val, eu possa contornar qualquer resquício no meu bebê. Afinal, ainda vivemos pelo capital.
*Para saber os locais de exibição do filme no Reino Unido, acesse o site da Soda Pictures: www.sodapictures.com
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