Eles existem

brasilobserver - dez 19 2014
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Foto: Divulgação

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Crianças em situação de rua fazem parte de um fenômeno global. Governos, empresas, veículos de comunicação, indivíduos e sociedade como um todo precisam dizer basta

Por Joe Hewitt, Diretor de Comunicações do Street Child World Cup

Em abril de 2014, mais de 200 crianças que haviam deixado de estar em situação de rua se reuniram aos pés do Cristo Redentor no Rio de Janeiro para transmitir uma mensagem muito clara ao mundo: “I am somebody” – ou, em português, “Eu sou alguém”. Tratava-se de um projeto que se chama Street Child World Cup, uma iniciativa inédita.

Pelo mundo, milhões de crianças vivem, trabalham ou estão em perigo nas ruas. Os números reais não são conhecidos, mas a UNICEF estimou, em 2002, que o total pode chegar a 100 milhões. Esta é uma questão que claramente afeta não apenas nós aqui no Brasil – é de fato um fenômeno social global intrínseco às populações urbanas.

Antes de serem incorporadas ao projeto, as crianças que vieram ao Brasil eram praticamente invisíveis, pois viviam ou trabalhavam nas sombras das ruas, sobrevivendo à margem da sociedade. Meninas e meninos, entre 14 e 17 anos, que vieram de 19 países, entre eles Libéria, Indonésia, Estados Unidos, Argentina e Inglaterra. Com o torneio de futebol disputado no Rio de Janeiro, essas crianças passaram a representar não apenas seus países de origem, mas também toda criança em situação de rua que, se for incorporada à sociedade de maneira correta, terá um futuro digno pela frente.

O torneio Street Child World Cup foi organizado para acontecer antes da Copa do Mundo da FIFA por um motivo: o impacto de mega eventos esportivos pode ser devastador para as crianças, principalmente aquelas em situação de rua. Foi isso, aliás, que deu origem ao projeto. Às vésperas do Mundial de 2010 na África do Sul, a cidade-sede de Durban “retirou” as crianças de rua do município para que os turistas fizessem bom proveito do torneio futebolístico.

Tal medida alimenta a percepção de que crianças de rua são menos humanas, e que não merecem ter atendidos seus direitos humanos. Além disso, atitudes como essa são baseadas na falsa crença de que crianças em situação de rua não podem ser reabilitadas, e que são apenas ameaças para a sociedade. Temos certeza que essa ideia não condiz com a realidade, por isso fizemos parcerias com organizações de várias partes do mundo para provar, todos os dias, que estamos certos. Com proteção e suporte, nenhuma criança viverá nas ruas.

Em 2014, nossa missão foi mostrar ao mundo o potencial dessas crianças, e todas que participaram do projeto fizeram exatamente isso. Mas, infelizmente, todos nós conhecemos realidade do Brasil.

Tomemos como exemplo o jovem Rodrigo, capitão do Time Brasil. A equipe foi formada a partir do projeto O Pequeno Nazareno, baseado em Fortaleza e em Recife. Rodrigo era o capitão porque exercia uma liderança natural, além de possuir muita habilidade com a bola no pé. Semanas antes do início da competição, no dia de seu aniversário de 14 anos, ele foi baleado fatalmente nas ruas da capital cearense. Embora Rodrigo estivesse no caminho de uma vida melhor, sofreu as consequências de um crime estúpido que havia cometido no passado, num ataque revanchista. Jamais esqueceremos Rodrigo e por isso ele inspira todos os envolvidos no projeto a fazerem cada vez mais pelas crianças de rua. Um mural foi pintado em sua homenagem e em memória a todas as crianças que perderam suas vidas nas ruas.

Também focamos em histórias inspiradoras de crianças que sobreviveram aos riscos das ruas. É o caso de Owais, do Time Paquistão. Quando Owais tinha oito anos, fugiu de um ambiente doméstico abusivo em Karachi e foi viver nas ruas. Ele passava o dia revirando o lixo à procura de qualquer coisa que pudesse vender. Owais é um exemplo de como muitas crianças acabam em situação de rua por acreditarem que estarão mais seguras do que em casa.

Felizmente, o jovem paquistanês teve sorte: foi encontrado pela organização Aazad Foundation, que garantiu a ele um local para dormir e recomeçar a vida. Owais adorava jogar futebol e isso o levou a ser escolhido para participar do Street Child World Cup no Brasil. Foi ele quem liderou a equipe e representou orgulhosamente os estimados dois milhões de paquistaneses que seguiram o torneio.

Quando retornaram ao Paquistão, os jogadores do time se haviam se transformado em heróis nacionais. Owais e seus companheiros embarcaram em uma turnê por 13 cidades, o que culminou com a assinatura de uma resolução de proteção dos direitos de 1,5 milhão de crianças paquistanesas em situação de rua. Uma mudança real.

As histórias de sucesso do Street Child World Cup conquistaram o apoio de figuras importantes, como o Papa Francisco, os ex-jogadores David Beckham, Zico e Bebeto a até os príncipes William e Harry.

Acreditamos nas crianças com as quais trabalhamos, crianças como Owais, e em projetos como o Azad Foundation. Mas acreditamos, acima de tudo, que nenhuma criança deve viver em situação de rua. Não apoiamos apenas crianças que participaram do SCWC, e sim todas aquelas que estão recebendo suporte de nossos parceiros.

O fenômeno social que leva crianças a viveram em situação de rua é uma questão global. É preciso que governos, empresas, veículos de comunicação, indivíduos e sociedade como um todo digam basta. Ou damos suporte a essas crianças em busca da verdadeira reabilitação ou elas continuarão nas sombras e se tornarão uma ameaça social.

Há muito mais a ser feito e por isso em 2016, anos dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, iremos realizar o Street Child Games. Mais uma vez, um mega evento esportivo servirá de plataforma para que os jovens com os quais trabalhamos tenham voz, e assim possam mudar a vida daqueles que ainda vivem nas ruas. Você pode se juntar a nós! Trabalhamos todos os dias para que crianças em situação de rua possam ganhar deixar essa realidade para trás.

Leia mais: Brasil Observer #23