Editorial: Consenso de Brasília

brasilobserver - dez 19 2014
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Tal Consenso de Brasília nada tem de novo. O mesmo foi feito por Lula

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Então ficamos assim: depois da mais acirrada eleição presidencial do Brasil pós-redemocratização, falta capital político para que Dilma Rouseff (PT) coloque em prática, em seu segundo mandato, as ideias pelas quais recebeu a maioria dos votos nas urnas de outubro passado. É diante dessa realidade que desponta 2015.

Durante a campanha eleitoral, principalmente depois do primeiro turno, Dilma adotou o que muitos consideraram “uma linha mais à esquerda” para pontuar claramente as diferenças entre ela e seu adversário, Aécio Neves (PSDB). A este último, representante inequívoco da emissão conservadora, colou-se a pecha do projeto tucano que de 1994 a 2002 pouco produziu além da mal explicada estabilidade econômica (na realidade, estabilidade dos mais ricos). Com Aécio, afinal, o país seria tragado pelos interesses do mercado, dos banqueiros, rumo a um cenário de arrocho salarial, perda de empregos, alta dos juros e desmantelamento das políticas sociais.

Dilma, por sua vez representante de um modelo neodesenvolvimentista comprometido programaticamente com o crescimento da economia e com a redistribuição de renda, conduziria o país rumo a um novo ciclo de desenvolvimento sem sucumbir às pressões neoliberais que levaram a economia mundial ao colapso.

Diante de difícil escolha, a maioria do eleitorado optou pelo projeto que permitia, no mínimo, pequena dose de esperança – por um governo soberano que acelerasse a redução das desigualdades entre ricos e pobres, pavimentando a construção de uma democracia social.

Vitoriosa nas urnas, Dilma age como se tivesse sido derrotada. Este jornal alertou, na edição de novembro, que na condução da política econômica do segundo mandato – claramente carente de novas diretrizes – a presidenta enfrentaria o risco de adotar o discurso que combateu na campanha eleitoral, perdendo credibilidade dentro da correlação de forças nacionais. A escolha da equipe que comandará a economia a partir de 2015 confirma a hipótese.

Não é estranho que a oposição continue agindo como se as eleições não tivessem terminado. Ao confirmar a guinada à direita na economia, Dilma passou a mensagem de que admitiu o erro. É natural que seus adversários sintam-se mais confiantes diante disso.

Tal Consenso de Brasília, em verdade, nada tem de novo. O mesmo foi feito pelo ex-presidente Lula quando assumiu seu primeiro mandato em 2002. Na ocasião, comprometeu-se com as diretrizes macroeconômicas herdadas de Fernando Henrique Cardoso assinando a famosa Carta aos Brasileiros. A conjuntura, porém, não é a mesma.

Com Lula, o Brasil tinha diante de si um cenário internacional de expansão econômica, e o alto preço das commodities garantia a capacidade de acumular o excedente necessário para avançar em áreas sociais. Essa não é mais a situação do mundo, por isso a estratégia de “reconciliação” com o mercado pode não dar certo.

A resposta que Dilma espera é o aumento dos investimentos privados – e o consequente reaquecimento da economia –, mas isso não se assegura apenas nomeando ministros que agradem a uma elite financeira. A reação positiva da mídia conservadora nacional e internacional é efêmera. A contrapartida, se vier, vai demorar a chegar e o preço cobrado será muito maior. Até onde Dilma está disposta a seguir o receituário das agências de classificação de risco?

Não se trata, obviamente, de demonizar o mercado como se estivéssemos no século passado. Mas de entender que a construção de um novo ciclo de desenvolvimento passa pela absorção das lições de experiências anteriores. E a principal delas é que o mercado sozinho não é suficiente para garantir o progresso ou a estabilidade dos sistemas econômicos, muito menos o bem estar dos cidadãos.

Como tornar o Brasil um país viável sem que se discuta o montante gasto com o pagamento dos juros da dívida pública? Como enfrentar de fato a desigualdade social sem debater uma reforma tributária que taxe mais as grandes fortunas do que os ganhos dos mais pobres? E como fazer isso com a participação da sociedade, ou seja, com mais democracia? O ano de 2015 tem que ser rodeado por esses temas.

COMISSÃO DA VERDADE

No dia 10 de dezembro foi entregue o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que durante dois anos e sete meses investigou os crimes contra a humanidade cometidos por agentes do Estado durante o regime militar no Brasil (1964 – 1985). Ao todo, 434 vítimas foram reconhecidas pela comissão, que apontou 377 pessoas como responsáveis diretas ou indiretas pela prática de tortura e assassinatos durante o período – entre elas presidentes, tenentes, generais, diplomatas, médicos legistas, policiais militares e civis.

De um lado, criticam a comissão por não ter investigado os crimes cometidos por grupos guerrilheiros de esquerda – como se a resistência armada de “aparelhos” descentralizados fosse compatível com a política de Estado ilegal colocada em prática pela ditadura militar, que transformou perseguição política, tortura e assassinato de opositores em práticas sistemáticas de manutenção do poder. A Comissão da Verdade acertou ao focar nos crimes dos poderosos.

De outro, criticam a comissão por não ter caráter punitivo, ou seja, as investigações não levarão os responsáveis pelos crimes à justiça – como fizeram países vizinhos, notavelmente Argentina e Chile. Isso não tem a ver com a comissão em si, mas com o caráter conciliatório do Estado brasileiro. Ainda que crimes contra a humanidade não prescrevam, o Supremo Tribunal Federal já negou a revisão da Lei da Anistia, que há 35 anos mantém impunes as violações do regime militar.

O trabalho da Comissão da Verdade é louvável, mas difícil medir quem saiu ganhando, a democracia ou a impunidade.

*Leia mais: Brasil Observer #23